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bocage — carta 5, olinda a alzia

Carta 5 - Olinda a Alzira



Alzira, sou feliz!... Quanto te devo!...
Das tuas instruções é tal o fruto.
Quanto encarava em torno era a meus olhos
De lúgubres ideias feio quadro;
Tudo o que vejo agora, alegres, vivas
Imagens prazenteiras me suscita.
Os temos sentimentos que provava,
Mil vezes combinava com ditames
Que desde a infância sempre me inspiraram;
Mil vezes reflectia que dos homens,
Ou de um tirano Deus, era ludíbrio.
Conceber não podia que existisse
Para experimentar contínua luta
Entre impressões da própria Natureza,
E princípios chamados da virtude.
No pélago de embates tão terríveis
Flutuando, implorei o teu auxílio;
Meu coração te abri: tu leste nele
O que eu nem mesma deslindar sabia.
Tu me ensinaste a ver quanto fingidos
Os homens são, nas vozes e nos gestos;
Rasgaste aos olhos meus máscara infame
Com que têm de uso todos encobrir-se;
Das bordas me salvaste de um abismo,
Onde a infeliz Olinda ia arrojar-se.
Perdoa, Deus imenso! Eu blasfemava
Contra a tua justiça; eu te supunha
Autor do mal, que os homens maquinavam.
Cria-te inconsequente e despiedado,
Pois sentimentos me imprimias n'alma
Que às tuas leis contrárias me pintavam!...
Tu foste, Alzira, foste a que lançaste
Um brilhante clarão ante os meus passos...
Finalmente aprendi que a singeleza
Do mundo era banida, e o seu império
Os homens tinham dado à hipocrisia.
Ruins! Amor por crime afiguraram,
E nem um só de amor vivia isento!...
Para eles não é crime um crime oculto,
Porque a simulação reina em sua alma,
Porque o remorso abafam em seu peito.
Amor um crime!... Os gostos mais completos
E os mais puros deleites o acompanham.
Se a ventura maior se une ao delito,
Quem há que se não diga delinquente?
Dentre as delícias que gozei, querida,
Com as tuas lições fugiu o crime;
Eu não senti no coração bradar-me
A voz desse pesar, sequaz da culpa.
No meio dos prazeres que gostava,
Graças rendi a um Deus que mos concede:
Se ele troveja sobre os criminosos,
Nunca os seus raios menos me assustaram!
Um amante acabou o que encetaste;
Ele, cujo olhar meigo me assegura
As doces qualidades que o adornam,
Afastou-me do espírito receios,
Que de mau grado combatia ainda.
Reinava em seus discursos a franqueza,
E o fogo que brilhava nos seus olhos,
Que o rosto lhe incendia, em seus transportes,
Que eram nascidos d'alma me dizia.
O labéu da impostura o não denigre;
Não é como o dos outros seu carácter;
Ingénuo, afável, ah! prezada Alzira,
Se tão amável é o teu Alcino,
Ninguém como eu e tu é tão ditoso!...
Pouco preciso foi para vencer-me.
Não teve que impugnar loucos caprichos,
Com que ufanas amantes dificultam
O mútuo galardão que amor exige.
Se amor ambos infressa e ambos colhemos
Seus mimosos favores, porque causa
Havia de indif'rença dar indícios,
Quando meu peito, ansioso, palpitava?
Se eu o levava da ventura ao cume,
Não me dava ele a mão para segui-lo?
Sim; nos seus braços me arrojei sem custo;
E se o pudor as faces me tingia,
Inda as chamas d'amor mais me abrasavam.
Eu nadava em desejos indizíveis;
E quantos beijos recebia, tantos
Cheios de igual fervor lhe compensava.
Seus lábios inflamados ateavam
As doces labaredas em que ardia;
E meus lábios, aos lábios seus unidos,
Sensações recebiam deleitosas,
Que me filtravam pelo corpo todo...
Tão grandes emoções exp'rimentava,
Que a tanto gosto eu mesma sucumbia!
Presa a voz na garganta, não sabendo
Nem já podendo articular palavra,
Respirando ansiada e com veemência,
Os meus sentidos todos confundidos,
Sem nada ouvir, nem ver, apenas dando
Sinais de vida, de prazer morria.
Excepto o meu amante, em tais momentos
Longe da ideia tinha o mundo inteiro;
O mundo inteiro então forças não tinha
Para do meu amante desprender-me.
Debalde ante meus passos furibundo
Monstro espantoso vira; em vão lançara
Do aberto seio a terra ondas de fogo;
Em vão coriscos mil o céu vibrara;
Dos braços do amante em tais momentos
Nada, nada podia arrebatar-me.
Oh quem pudera, Alzira, descrever-te
Que êxtase divinal veio pôr termo
A tais instantes de suaves gostos!...
Isto pode sentir-se e não dizer-se...
Agora, e só agora me parece
Que começo a existir; reproduziu-se
Uma total mudança na minha alma!...
O mundo para mim já tem encantos;
Sb outras cores vejo mil objectos,
Que a fantasia me pintou tristonhos.
Propício Amor abriu-me os seus tesouros,
A Natureza seus tesouros me abre.
Tudo te devo, amiga: em todo o tempo
A teus doces conselhos serei grata.
Oxalá ditas tantas saboreies
Quantas por ti, querida, eu própria gozo!
Oxalá sintas com Alcino os gostos,
Que experimento de um amante ao lado;
Nem ventura maior posso augurar-te,
Porque maior ventura haver não pode.



Bocage

1765-1805
in "Poesias Eróticas, Burlescas e Satíricas"
Publicações Europa-América



24/12/2006
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