caminho dentro / estrada fora
CAMINHO DENTRO
nem sim, nem nao,
amigo zé fernandes.
vou, nao vou... arranco-me a esta pasmaceira provinciana ?
troco-a por outra mais genuina, com mais estalico, com mais
arroz de cabidela, sardinha assada na brasa & linguados ?
nota bem zé fernandes,
por aqui o inverno nao quer morrer; que luares explendidos
por ai vao e ao cair da tarde, que barras rubreas
cobrem a linha de horizonte, que um ceu azureo envolve
em doçuras que recordam o antigo pao de lo de felgueiras !
olhas e ficas sem folgo...
um pouco mais abaixo, por essa europa meia-descozida,
as aguas mil metem afliçao, o sul afoga-se !
(... quando nao sufoca em estranhas cremaçoes maçonicas)
olha-me para esse peixe fresco, que abundancia!
agora, por dois patacos saboreias a exquise noix de st jacques,
por certo, avariada pela poluiçao ao mercurio e tolenadas de plastico
que vogam mar fora num sexto continente,
mas o que é que neste mundo
nao anda avariado, macambuzio, amargurado, hein ?
nao vas pensar que por aqui sofro de fartura, nao compadre !
macron, o reizinho das taxas e das sobretaxas variadas,
encarrega-se de me recordar todas as manhas,
que a fronteira entre a fartura e a penuria
é tao ténue como um desses cabelitos loiritos que ornam
a oval perfeita da inegalavel dulcineia del toboso, a tao recordada,
a tao cobiçada donzela dos moinhos da colina!
a civilizaçao (esta nossa civilizaçao ultraliberal)
reclama insaciavelmente oiro, mirra
pompas e regalos que a servente plebe
por entre desnodados e arquejantes esforços fornece
por-um-da-ca-aquela-palha humilhante, tao descorçoante...
que me falta, zé fernandes, que me falta ?
falta-me ar, falta folgo, vontade de... comer baleias
porque descortino sem parar a outra banda entre bruma e arvoredos,
mas sem esse prometido porto de abrigo,
tudo declina, agora vem a faltar-me tudo... o simples regaço reparador das fatigas;
(valha-nos o sebastianismo como muleta, amén).
aquele abraço
o teu jacinto.
donville, 6 novembro 2018
(ps - deixo-te com este cliché que recolhi este ano na tao
badalada feira agricola de Lessay)
+++++++
ESTRADA FORA
(Ode à memória solúvel)
Na estrada de Yazd para Sul,
à velocidade de um autocarro de turismo,
o meu olhar é o de um viajante apressado
que passa para não voltar.
De súbito,
um caminho amarelo de terra batida contorna um monte
— e num volteio malabar logo desaparece para sempre da minha vista.
Por um conhecimento geral, vago,
mas por assim dizer universal,
sei que foram pés e patas que o fizeram caminho como agora é,
e rodas de carroças, motorizadas, carros, tractores,
talvez camiões de longo curso.
O seu destino é-me desconhecido
porque eu sou um viajante que não pára.
Mas o que o faz desaparecer da minha vista, para sempre,
é o monte azul agreste que faz dele,
do ponto de que o vejo ao passar,
um caminho que contorna um monte que me esconde o seu destino.
À força de outra suposição universal,
cismo que o monte, embora de azul eterno, desaparecerá um dia,
percutido por chuva, por vento ou
mais drasticamente por martelo pneumático.
Deixará então de ser o monte agreste que faz desaparecer da minha vista
o caminho de terra batida que contorna o monte que agora existe.
Mas nem por isso o destino do caminho deixará de me ser desconhecido
porque é do azar de um viajante
desconhecer o final dos caminhos que não escolhe
e a que não pensa voltar.
Também o caminho deixará de ser caminho,
pelo menos, o caminho amarelo que desaparece da minha vista
porque contorna um monte agreste e azul
que me esconde para sempre o seu destino.
Agora, porém,
mesmo ao olhar breve de um viajante que passa,
caminho e monte são coisas concretas.
Concretas em si, e concretas na minha imaginação.
Humanas, portanto,
e inseparáveis, como siameses que partilham órgãos vitais
— um coração único, estou certo.
Faço questão que assim seja
porque, por um átomo de tempo, esse caminho e esse monte,
na sua condição de seres exilados,
perdidos em luz branca,
foram tudo o que do mundo me prendeu a atenção.
Já longe,
porque viajo a oitenta quilómetros por hora, na condição de visitante fortuito,
quero crer que um outro olhar,
cúmplice do meu,
os guardará como eu guardei
— tão só como modesto e ignorado caminho amarelo de terra pisada
que contorna um monte azul escalvado
que o faz desaparecer da vista dos viajantes que passam ao largo
sem propósito de voltar.
E que ainda outro olhar e outro e outro
de certo modo os eternizem como memórias avessas à erosão,
já que toda a realidade do mundo realmente existente
é precária e branca aos olhos de um viajante que passa e não volta.
Zé Fernandes
Irão-Lisboa, Nov-Dez 2018
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