jorge de sena, o surrealismo por conta alheia
Ode ao surrealismo por conta alheia
Que levas ao colo,
Embrulhado em sarrafaçais transcritos mau olhado abomináveis trutas e
[outros preconceitos?
Um sacerdote? Um gato? A timidez?
Que transportas silencioso, imóvel, como dormindo, no xaile pespontado
[e verde com que limpas o suor, o sémen, as fezes, tudo o que
[abandonas, ofereces, vendes, expulsas, injectas, convoscas, reprovas,
[descreves, etc.?
Embalas e não respondes.
Temes a polícia, o tapete, o capacho, o telefone, as campainhas de
[porta, as pessoas paradas pelas esquinas reparando em por de baixo
[das roupas das outras que passam?
Temes as palavras?
Temes que saiam versos, lágrimas, casamentos, satisfações
[apressadas em campos de arrabalde?
Temes os partidos, os artigos de fundo, os banqueiros, as capelistas,
[a inflação, as úlceras do estômago ou sociais?
Que transportas ao colo
em silêncio e num xaile?
É a vida? Anúncios luminosos? Casas económicas? O mar? irmãos?
[Reivindicações? Um livro?
Embalas e não respondes.
É a vida? A noite que cai? As luzes distantes? Um gesto? Um olhar? Um
[quadro? Uma poesia lírica?
(oportunamente interrompida pela chegada de uma pessoa conhecida)
(de Pedra Filosofal, 1950)
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