luís de camões, vão as serenas águas
Vão as serenas águas do Mondego descendo mansamente, que até o mar não param; por onde minhas mágoas pouco a pouco crecendo, para nunca acabar se começaram. Ali se ajuntaram neste lugar ameno, aonde agora mouro, testa de nove e ouro, riso brando, suave, olhar sereno, um gesto delicado, que sempre n'alma m'estará pintado. Nesta florida terra, leda, fresca e serena, ledo e contente para mim vivia, em paz com minha guerra, contente com a pena que de tão belos olhos procedia. Um dia noutro dia o esperar m'enganava; longo tempo passei, co a vida folguei, só porque em bem tamanho me empregava. Mas que me presta já, que tão fermosos olhos não os há? Ó quem me ali dissera que de amor tão profundo o fim pudesse ver ind'algüa hora! Ó quem cuidar pudera que houvesse aí no mundo apartar-m'eu de vós, minha Senhora, para que desde agora perdesse a esperança, e o vão pensamento, desfeito em um momento, sem me poder ficar mais que a lembrança, que sempre estará firme até o derradeiro despedir-me. Mas a mor alegria que daqui levar posso, com a qual defender-me triste espero, é que nunca sentia no tempo que fui vosso quererdes-me vós quanto vos eu quero; porque o tormento fero de vosso apartamento não vos dará tal pena como a que me condena: que mais sentirei vosso sentimento, que o que minh'alma sente. Moura eu, Senhora, e vós ficai contente! Canção, tu estarás aqui acompanhando estes campos e estas claras águas, e por mim ficarás chorando e suspirando, e ao mundo mostrando tantas mágoas, que de tão larga história minhas lágrimas fiquem por memória.
Luis de Camões |
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