luiz pacheco — o libertino passeia por Braga...
O LIBERTINO PASSEIA POR BRAGA, A IDOLÁTRICA, O SEU ESPLENDOR(1970)
Acordo aos estremeções, aflito, com uma consciência muito nítida do encontro, e começo por fazer figas debaixo da roupa ao Intruso, mas depois, cheio duma superstição infantil (que me ficou da criança que fui, entenda-se), faço o sinal-da-cruz. E para não tirar as mãos debaixo do quente das mantas, engrolo gestos e palavras mesmo sobre o peito, à matroca, como um aprendiz de catequese faria. Sossego mais. Começo a pensar como morrerei. Desastre? colapso? ou loucura súbita e logo suicida? Adormeço nisto. Ao acordar conto ao Forte o meu sonho, para o esconjurar. Ou talvez para criar uma testemunha do meu presságio nocturno, se sair certo. Figas! Cruzes! Malandro! Canhoto! E logo eu, que gosto tanto da Vida! A caminheta dos livros segue para Braga; primeira paragem, em Esporães ou Esporões (2), outra terra a que perdi o nome (3) e depois Somar. Eis a grande revelação da jornada: Deolinda da Costa Rodrigues, 14 anos, no 3º ano do curso comercial, residente no lugar de Assento. Fico varado! Mas é a Lolita tal-e-qual do Nabokov, é a Super-Gêninha jamais esquecida. A Super-Super-Gêninha, que talvez me vá fazer esquecer de vez a outra. Baixa, encorpada, ancas cheias como se quer, barriga abaulada, leveza nos modos, gravidade e força de mulher no corpo, uma suave expectativa de adolescente. Que beleza! Que maravilha! Morena, olhos atentos, cabelo entrançado (seria? ou rabo-de-cavalo?). Adivinho e aspiro o perfume do seu sexo; leio-lhe nos olhos os gritos que ela daria de prazer se a possuísse agora, nesta luta de vida ou de morte contra o Mafarrico, a última, a grande vitória do Libertino. O espichar de corpo, o estrebuche no orgasmo, que beleza, que maravilha!
Sou eu que lhe ensino a preencher a ficha de inscrição, depois perco-me dela, para não revelar a minha exaltação. Ela é que escolhe os livros: três volumes Condessa de Ségur ("O Enjeitadinho"? "O Corcundinha"?, são livros de títulos tristes). Espero-a fora da caminheta, estendo a mão, pego nos livros que pediu, faço perguntas calmas; ela é grave, concisa, responde logo com naturalidade ao que lhe pergunto: "Andas a estudar? sim. Em que ano? terceiro ano da escola comercial. Estás adiantada". Ela fica ainda perto da caminheta uns minutos, a ver os que entram e saem, e depois segue num passo lento por uma azinhaga que desce entre muros. Faço umas manobras disfarçatórias, ando por aqui por ali, e acabo por enfiar alvoroçadamente azinhaga abaixo, na esperança de a tornar a ver, mesmo de longe! e desfocada em vulto com as minhas múltiplas dioptrias! ou falar-lhe, o que era já improvável. Pergunto a uns indígenas muito sujinhos, benza-os Deus, onde era o lugar de Assento, novitos, nunca ouviram falar (nem chego até a perceber se entenderam o que lhes disse). Sigo pela azinhaga. Está uma manhã puríssima e silenciosa. Casas velhas, palheiros de gente e gado, tons pela verdura de castanho, ruivo, sanguínea nas parreiras e árvores. Conversas que me chegam, abafadas pelos muros grossos das empenas, pela distância, pela sua própria peculiar intimidade, que se espalham no ar e congelam em cima de mim uma súbita tristeza, ou isolamento de angustiado: quem me dera ser um deles! ser um da casa! eles conhecerem-me!, mas não como agora, mas desde o princípio, um como eles, na pureza fresca e larga desta manhã dos arredores de Braga no Outono, com a vizinhança permanente da Deolinda e seu cheiro de terra lavrada por semear. Medito, ocorre-me por um instante a diferença das classes e fossos vários que as separam, do qual o maior não será o económico sendo o mais decisivo como maquilhagem das pessoas (explico: sem um tostão na algibeira, eu era tão pobre como um deles ou mais pobre ainda, mas o que nos separaria para sempre era aquela estranheza feita dos nossos tempos diferentes e de como cada qual os tínhamos gasto, eles ali como plantas, húmus, eu sempre por casas e terras e gentes afinal a mim alheias). Como lhes fazer compreender agora a minha vida, ou contá-la como novela ao serão, quem sou, quem fui, o que fiz, e onde tudo começou e em que capítulo ficámos na última noite e onde tudo irá acabar... Impossível saber e eles saberem-no, sofrer como eles sofreram ou eles sofrerem por mim as minhas dores passadas, gozar eu com as suas alegrias e nada, nada disto nos poderá ser comum. |
Regresso à caminheta e venho a saber depois que o lugar de Assento é estrada abaixo, para ao pé da igreja. Voltamos todos para Braga. Apontei o nome da miúda e o resto. Almoçarada em Gualtar com o Forte e o King- Kong, o motorista, que paga tudo e está simpatiquíssimo comigo e com o Mundo. Frango com arroz, à minhota, uma delícia. Vinho verde, à minhota, uma delícia. Como bundaradas porque adoro arroz de cabidela e vinho verde e minhotas: "Deolinda da Costa Rodrigues, 14 anos, no lugar de Assento, cá me ficas, mas este arroz marcha à frente!". Bebo mais que um Arcebispo, com o Bom-Jesus em cenário. Deixo de pensar na Morte, essa magana. Estou um tanto pesado e alegrote. Voltamos a Braga. Cafés. Decido ficar. O Forte dá-me cinco escudos, que é quanto lhe resta. Um bom Libertino não precisa de dinheiro. Decido ficar e fazer uma tarde de luxúria mental em Braga, para esconjurar o cheiro a incenso e mofo de padre que empestam estas ruas.
Largo o casaco e a sacola num tasco. Meto mais verde. Telefono ao. Victor de Sá, a quem vinha incumbido de entrevistar para a "Seara". Grande confusão política em Braga: há duas listas da Oposição, uma, a boa, que o Governo cortou, "da maneira mais arbitrária...", diz-me o V.S.; outra, a dos moderados ou mortos (é o termo dele). E que não dá entrevista, que tem muito que fazer, que estão a estudar uma reclamação ou petição, etc. Oh diacho, é outro caso de pré-deputado ou candidato a deputado, que chega ao dia das eleições sem saber se vai, se o deixam ir, se lhe contam os votos, se as listas de eleitores lhe são facultadas, a cegada do costume. E duas listas da Oposição, em Braga?!... É para ver se perdem mais depressa, ah!... ah!... (isto sou eu a rir-me dos políticos de Braga). Concluo que em Braga a política é uma trampa, uma trampa aflita em dias de sol deste, com raparigas na sua folga de domingo, o Vianense a jogar contra o Braga, logo excursões de Viana ali perto, com certeza - e a Deolinda perdida entre azinhagas e casas velhas, o lugar de Assento ao pé da igreja, a Deolinda ainda não esquecida mesmo depois do frango do almoço. Vou-me a ela!
Mas passam por mim duas miúdas: uma, grande cu descaído, badalhoca de cara, trouxa de carne a dar às pernas - é a que me tenta; outra, muito compostinha no trajar, casaco preto, saia branca ou creme, muito viva, muito espevitada. Atiro pontaria na badalhoca, a ver se avanço depressa o negócio, jogando no ganha-perde da beleza física e no cálculo das probabilidades dos complexos das feias. Vou-as seguindo, de rabo alçado como um garanhão, e a gorduchona já me topou. Olha para trás, por vezes. Já comunicou à parceira. A andar, a andar, chegamos a uma espécie de logradouro público, com certo ar antiquado e bancos largos de pedra, onde finda a linha dos eléctricos para o estádio (vejo o nome, Estádio 28 de Maio, oh a Política!, ah! ah!, isto só em Braga). Mas agora o grupo das meninas complicou-se: entrou por ali uma velha gorda, e inútil, e naturalmente sabichona e danada por invejar o prazer dos outros como é próprio de velhas; com ela, e tão empatas como ela, duas estúpidas de duas garotitas, broncas e também inúteis para questões de sexo. Sento-me num banco e faço de grão-senhor, porque assim disfarço as calças rotas no rabo. A miúda mais bonita dá-me uma chance? (será isso?). Atira-se a dizer: "Eu sento-me já aqui", e vem toda lampeira para o meu banco, mas depois passa ao do lado. Manobra provocatória, mas feita por uma quase amadora? assim o entendi, e lanço-lhe uns olhares de desfazer pedras, o meu olhar mágico, de megatoneladas de cio (assim penso, mas com as 17 ou mais dioptrias e o estigmatismo e as lentes, e as clarabóias do verde, que olhar será o meu?). A trupe das estúpidas, porém, escolhe um banco lá pro fim e depois ficam todas sentadas e de costas umas para as outras e caladas. Domingos divertidos passam estas raparigas em Braga! quase tanto como o V.S. a preparar as suas petições para o ministro limpar o rabo a elas. Crio fastio de posar ao grão-senhor, distraído e benevolente com a paisagem. E começo a deambular, de árvore para árvore, e vou comprar castanhas ao cimo duma escadaria porque as duas miúdas broncas para coisas de entre-pemas vieram também ali abastecer-se; o meu fito era chegar à fala com elas e daí às mais graudinhas. Começo a comer castanhas e fico raivoso - ou embuchado? Escrevo então dois bilhetinhos (de que desculparão o estilo parvóide: nestas coisas de engates de miúdas e, até, de graúdas, segundo opinam os entendidos, quanto mais estúpidas as declarações de amor mais resultadodão, aqui a intenção, a sugestão é tudo), em folhas arrancadas da agenda, assim: Preciso muito de falar consigo, diga-me o seu nome e morada; outro, assim: Lambia-te toda, desde as maminhas até ao pipi. Verás que gozo, é melhor que bom, em linguagem infantilizada, a ver se pega. Amachuco-os até caberem numa bolinha dentro duma casca vazia de castanha, que guardo na algibeira da blusa, ao lado da bolota que me caiu em cima dos ombros esta manhã e considero um talismã... ora agora aqui se podem rir da minha infantilidade, mas olhem que vi O Mundo a Seus Pés. Viram ? A castanha amorosa é para mandar à gorducha ou à outra, a tal compostinha, isto se chegarmos à fala, do que já começo a duvidar; sinto que estou a perder tempo (como o outro tonto, a redigir petições sinceras) e precipito os acontecimentos. Aproximo-me do banco delas e faço um jogo declarado de olhares furiosos, de cem megatoneladas, para a gorducha lorpa, que é a que me deita as trombas de frente; a outra, a sagaz, está de costas. A velha topa-me ou é informada (porque há gente capaz de tudo, seria alguma das miúdas ou das brutinhas primárias?), e resolve arrecadar o rebanho para casa. Vou-as seguindo a distância, e pelo caminho inda catrapisco umas malfeitonas que andam a saber o seu Destino numa maniqueta chegada da América que diz se o que se tem no pensamento sairá certo ou errado, e dá uma sina disparatada a cada cliente, tudo por dez tostões (esqueci-me de dizer que no caminho para lá, para o repouso ao pé do estádio, a miúda gira tinha ido consultar a maquineta, muito azougada e preocupada com o seu futuro, e foi aí, até, que reparei como era vivaz e um tanto parecida (ou não seria ilusão minha?), nos modos e cabrice, com a Geninha. Começo a ver que, com guardiã à perna e saloias até mais não, destas fulanas não levo nada. Preparo uma vingança digna dum Libertino nos domingos sonolentos de Braga. Elas vão ao fundo da avenida; então, chamo um puto com cara de esperto: "Eh pá, queres ganhar uma croa? (eu tinha só três) sim, senhora! atão, entrega esta castanha àquela menina que vai ali, de casaco preto e saia branca. Mas de modo que ninguém veja...". O puto desata numa corrida e eu atravesso logo para o outro passeio, como o bombista que se afasta dos estilhaços que ele próprio provocou. Anarquismo minhoto!
(1) o cinismo da personagem é bem evidente nesta palavra de simpatia, não acham?
(2) Uma miudinha esfarrapada e esperta, um-padre-Amaro-sósia-do-outro; uma capelita com escadaria Bom-Jesus em miniatura (lembro-me de subir lá acima e fazer um pacto; mas a escadaria é alta, ainda); uma bonita minhota de cetim preto, com olhos largos e calmos, belos olhos que nunca mais verei.
(3) Umas miúdas de 4, 5 anos, a quem peço tremoços e castanhas, e depois ficam muito excitadas, e começam a levantar as saias umas às outras, dizendo (quem diz, é uma desdentadinha, magrizela e encarvoada): «Mostra a zabelinha, mostra a zabelinha a este senhor!». Olha que putitas!
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