alexandre o'neill, pela voz contrafeita da poesia
Pela voz contrafeita da poesia
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Dá-nos os passos os teus passos de manhã triunfal de cidade à solta os gestos que devemos ter quando a alegria descobrir os dedos em que possa viver toda a vertigem que trouxer da noite os primeiros dedos do sonho do teu sonho nosso sonho mantido mesmo no mais íntimo abandono mesmo contra as portas que sobre nós : em silêncio e noite em venenosa ternura em murmúrio e reza se fecharam já mesmo contra os dias vorazes que por todos os lados nos assaltam e consomem mesmo contra o descanso eterno a viagem fácil com que nos ameaçam vigiando todo o percurso do nosso sono interminável sono coração emparedado no muro cruel da vida desta que vivemos que morremos assim esperando assim sonhando sonhando mesmo quando o sonho ignorado recua até ao mais íntimo de cada um de nós e é o gemido sem boca a precária luz que nem aos olhos chega Não digas o teu nome : ele é Esperança vai até aos que sofrem sozinhos à margem dos dias e é a palavra que não escrevem sobre as quatro paredes do tempo o admirável silêncio que os defende ou o sorriso o gesto a lágrima que deixam nas mãos fiéis Não digas o teu nome : quem o não sabe quem não sabe o teu nome de fogo quem o não viu entrar na sua noite de pobre animal doente e tomar conta dela mesmo só pelo espaço de um sonho O teu nome até os objectos o sabem quando nos pedem um uso diferente os objectos tão gastos tão cansados da circulação absurda a que os obrigam As coisas também gritam por ti E as cidades as cidades que morreram na mesma curva exemplar do tempo estão hoje em ti são hoje o teu nome levantam-se contigo na vertigem das ruas no tumulto das praças na espera guerrilheira em que perfilas o teu próprio sono Ah onde estão os relógios que nos davam o tempo generoso os dedos virtuosos os pezinhos musicais do tempo as salas onde o luxo abria as asas e voava de cadeira em cadeira de sorriso em sorriso até cair exausto mas feliz na almofada muito azul do sono Onde está o amor a sublime rosa que os amantes desfolhavam tão alheios a tudo raptados pela mão aristocrática do tempo o amor feito nos braços no regaço de um tempo fácil perdulário vosso Hoje não é fácil o tempo já não é vosso o tempo viajantes do sonho que divide doces irmãos da rosa colunas do templo do Imóvel prudentes amigos da vertigem deliciados poetas duma angústia sem vísceras reais já não é vosso o tempo. Noivas do invisível não é vosso o tempo Relógios do eterno não é vosso o tempo Impossível Impossível cantar-te como cantei o amor adolescente colorindo de ingenuidade paisagens e figuras reduzindo-o à mesma atmosfera rarefeita do sonho sem percurso no real Impossível tomar o íngreme caminho da aventura mental ou imaginar-te pelo fio estéril da solitária imaginação Tão-pouco desenhar-te como estrela neste céu infame dizer-te em linguagem de jornal ou levar-te à emoção dos outros pela voz contrafeita da poesia Impossível Impossível não tentar dizer-te com as poucas palavras que nos ficam da usura dos dias do grotesco discurso que escutamos proferimos transidos de sonho no ramal do tempo onde estamos como ervas pedrinhas coisas perfeitamente inúteis pequenas conversas de ferrugem de musgo queixas questiúnculas arrotos comoventes * Mas de repente voltas numa dor de esperança sem razão de ser Da sua indiferença agressivamente as coisas saem Sentimo-nos cercados ameaçados pelas coisas e agora lamentamos o tempo perdido a dispô-Ias a nosso favor Porque é tempo de romper com tudo isto é tempo de unir no mesmo gesto o real e o sonho é tempo de libertar as imagens as palavra! das minas do sonho a que descemos mineiros sonâmbulos da imaginação É tempo de acordar nas trevas do real na desolada promessa do dia verdadeiro Nesta luz quase louca que se prende aos telhados às árvores aos cabelos das mulheres aos olhos mais sombrios falamos de ti do teu alto exemplo e é com intimidade que o fazemos falamos de ti como se fosses a árvore mais luminosa ou a mulher mais bela mais humana que passasse por nós com os olhos da vertigem arrastando toda a luz consigo Alexandre O´Neill Poesias Completas 1951/1981 Biblioteca de Autores Portugueses Imprensa Nacional Casa da Moeda |
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