Sentenças delirantes dum poeta para si próprio
em tempo de cabeças pensantes
1 Não te ataques com os atacadores dos outros.
Deixa a cada sapato a sua marcha e a sua direcção. O mesmo deves fazer com os açaimos.
E com os botões.
2 Não te candidates, nem te demitas. Assiste. Mas não penses que vais rir impunemente a sessão inteira. Em todo o caso fica o mais perto possível da coxia.
3 Tira as rodas ao peixe congelado, mas sempre na tua mão.
Depois, faz um berreiro. Quando tiveres bastante gente à tua volta, descongela a posta e oferece um bocado a cada um.
4 Não te arrimes tanto à ideia de que haverá sempre um caixote com serradura à tua espera. Pode haver. Se houver, melhor...
Esta deve ser a tua filosofia.
5 Tudo tem os seus trâmites, meu filho! Não faças brincos de cerejas sem te darem, primeiro, as orelhas.
Era bom que esta fosse, de facto, a tua filosofia.
6 Perguntas-me o que deves fazer com a pedra que te puseram em cima da cabeça? Não penses no que fazer com. Cuida no que fazer da.
É provável que te sintas logo muito melhor.
Sai, então, de baixo da pedra.
7 Onde houver obras públicas não deponhas a tua obra. Poderias atrapalhar os trabalhos. Os de pedra sobre pedra, entenda-se.
Mas dá sempre um «Bom dia!» ao pessoal do estaleiro. Uma palavra é, às vezes, a melhor argamassa.
8 Deves praticar os jogos de palavras, mas sempre com a modéstia do cientista que enxertou em si mesmo a perna da rã, e que enquanto não coaxa, coxeia. Oxalá o consigas!
9 Tens um glorioso passado futurível, mas não fiques de colher suspensa, que a sopa arrefece.
10 Se tiveres de arranjar um nome para uma personagem de tua criação, nunca escolhas o de Fradique Mendes. A criação literária não frequenta o guarda-roupa, muito menos quando a roupa tem gente dentro.
11 Resume todas estas sentenças delirantes numa única sentença: Um escritor deve poder mostrar sempre a língua portuguesa.
Alexandre O'Neill
de Poesias Completas, Assírio & ALvim, 2000 |