bras da costa - o grito do peixe de espada à cinta
O grito do peixe de espada à cinta
à la mémoire
d'un journaliste
un petit homme blonde
chaussant des lunettes noires
couvert de sophismes de la tête aux pieds
qui mangeait à tous les rateliers
de France et de Navarre
mort d'une overdose de marroniers
1
É a segunda lápide que desaparece.
Não se sabe se a nova gerência remeterá a placa.
E as expensas. Para quem são as expensas ? Será de novo a nossa embaixada a pagar? A segunda lápide evocativa foi ali descerrada na presença do nosso presidente, em 1991.
O nosso poeta tem ainda outra lápide no Café de la Paix. Foi colocada em 1990. O poeta suicidou-se em 1916. O presidente talvez ainda não fosse nascido, se fosse teria agora setenta e oito anos.
(E nós ralados).
2
Quem vai pagar as expensas da nova lápide evocativa? E se a nova gerência aceitar a nova lápide, a quem caberá a honra de a descerrar ?
Descerrar uma lápide requer pelo menos duas qualidades : uma grande destreza do braço direito e um sorriso apropriado. O adido, se bem que seja o homem mais esperto da sua geração, é muito pequeno para estas coisas. O presidente também. Mas o presidente é fixe e sabe viajar. O poeta também sabia. Viajava muito/muito.
Sozinho, no seu quarto. Quarto de hotel.
Em 1991,
o nosso presidente descerrou ali uma lápide evocativa.
É obra!
3
Duas mudanças de gerência, duas lápides pró maneta. Por este andar mais valia comprar o hotel. Seria mais cómodo, possivelmente mais económico, quem sabe, talvez rentável.
Há que falar à Fundação.
A lápide não voltaria a desaparecer. E se por desventura tal acontecesse não haveria motivo para lamentações. Poder-se-ia encomendar uma dúzia de lápides por atacado. E, no caso improvável de um novo infortúnio, zás ! pela calada da noite selava-se nova lápide. Sem cerimónias. Sem dar mais incómodos ao presidente. Que é um tipo fixe, com muitas notas de vinte na ponta dos dedos, mas de quem não se deve/não se pode abusar. Evidentemente.
4
Por seu lado, a lápide do Café de la Paix nunca desapareceu.
Numa cidade onde tudo desaparece facilmente, o facto mereceria relevo.
Os jornais deveriam ser obrigados por lei a publicar igualmente as noticias prazenteiras.
Por exemplo :
Ainda não desapareceu, em Paris, a lápide do poeta.
Ou mais prosaicamente :
O avião Paris-Lisboa das 18h30, no qual viajava o nosso enviado especial [enviado que confessava a miúdo e com a lágrima no olho aos colegas : quando o trabalho acabou com o 25 novembro, voltei-me prá cultura], chegou ontem às 18h23. Que conste.
5
Tais noticias deveriam ser dadas em grandes parangonas de primeira página, pelo menos/pelo menos uma vez por semana, com o apoio nacional das bolachas Maria. Podia escolher-se um dia.
A segunda-feira, por exemplo.
Comece bem a semana, coma uma bolacha Maria e leia as nossas noticias prazenteiras exclusivas!
E o subsecretário de estado da cultura atribuiria pelo natal, o prémio anual à noticia prazenteira mais conseguida, publicada pelo jornal mais audacioso na escalada do prazer e do bom gosto informativo.
Os jornais enviariam cronometristas fiáveis aos aeroportos internacionais. Vestais radiosas aos estádios, com coroas de louros e lirios. Enviados especiais a Paris para vigiar as lápides evocativas dos poetas com classe. E a Bruxelas, à Praça Flagelet, cabeleireiros sagazes capazes de avaliar num ápice o volume do sistema piloso dos poetas futuristas.
As noticias prazenteiras ficam bem aos poetas que só sabem fazer versos.
6
Um destes dias, um homem falava na telefonia.
Falava mansinho, pianíssimo.
Em 1994, no mês de Fevereiro, suicidou-se um outro poeta que se perguntava por vezes : "Meu deus, a noite dos tempos. Será que a noite dos tempos existe ? E dos calcanhares até às têmporas, e da terra até ao céu, ela mordeu o aço".
7
O homem da telefonia falava piano. Pianíssimo e comedido.
Comedido e mansinho. Um fio de voz.
Jurava a pés juntos que o poeta nunca tinha trabalhado.
Fechado no seu quarto, desde a aurora dos tempos, empapava-se de poesia universal 12° e de tempos a tempos expelia pela clarabóia escancarada uma braçada de poemas. Poemas à moda de.
Que um editor a moda de se apressava de recolher e publicar para grande gáudio de leitores a moda de.
Também se deveria pensar em descerrar lápides evocativas à memoria de poetas à moda de. Por certo, em principio, as lápides evocativas devem atribuir-se de preferência aos poetas suicidas e lamentavelmente os formosos poetas à moda de não se suicidam. Conservam-se.
8
O homem que falava piano, pianíssimo na telefonia, essa voz de castrado, dizia que o poeta formoso tinha um tremendo horror ao trabalho.
Tinha passado toda a sua vida vivida e passaria o que dela restava, a ver trabalhar os outros, a ler a poesia universal 12° e a fazer versos.
A não trabalhar.
O poeta formoso era suficientemente curioso e erudito para ter lido o genro do Marx. Mas em boa verdade não precisava de tal álibi intelectual para justificar a sua preguiça poética incurável. Contentava-se com o exemplo vivo de William Beckford e da perspectiva fractal dos jardins ingleses na estação doirada em que as gardenias florescem.
9
Também viajava muito/muito.
Com as expensas pagas pelos organizadores de colóquios e simpósios. Um bilhete para ele, outro para a Dolores e uma cama de casal cinco estrelas, sff.
E ritualmente, o olho húmido, a voz tremida, desculpava-se junto ao linguista de serviço, pela maçada, pela tremenda carga de trabalho que lhes ia dar. Ele, o poeta prazenteiro. Ele, a voz enfática graciosa. Ele, o formoso arauto da gesta lusa. Ele, o devorador de poesia alheia. Ele, o ruminador de poesia de importação garantida 12°. Prometia comovido que para a próxima vez seria diferente. Sim, publicaria novo florilégio mas desta feita acompanhado de uma bibliografia pormenorizada.
Todas as leituras, todos os pedaços de alma alheia, tudo tim-tim por tim-tim anotado e classificado. Para dar menos trabalho. Ele, o poeta que detestava o trabalho, o labor, o suor.
O linguista de serviço protestava com suavidade.
Que não senhor, que não se agastasse assim, que cada um é como cada qual e cada coisa no seu lugar, o poeta a fazer versos e ele, o homem de ciência, a descortinar as ilações, a desvendar a natureza polifónica e polissémica, a revelar a estrutura anagramatica.
A divisão do trabalho era mesmo assim : uns a versejar de espada à cinta, outros a vigiar a construção linguística de cacete em riste.
Que se a tarefa era árdua a satisfação era maior/maior. Que um e outro trilhavam caminhos diferentes, mas quão exaltantes, quão convergentes.
Que não dava incomodo, não. Que tanta formosura e virtuosidade não necessitavam justificação.
Que assim que assado.
10
Não se incomodem,
foi o recado que deixou um outro poeta em 1930, antes de se suicidar.
Não tem importância. E simples, vou-me desta para... porque "a barca do amor esfrangalhou-se contra a corrente da vida".
11
Na passada segunda-feira as gazetas prazenteiras informaram os seus prezados leitores que o presidente já estava de malas aviadas para descerrar em Paris uma nova lápide ao poeta.
12
Meu deus/meu deus
será que a noite dos tempos existe
de verdade?
Brás da Costa
(de "Le cri du poisson"
ed. Albatroz
Paris, 1994)
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