eça de queiroz — carta de paris (II)
II
— Os duelos — A amnistia
— Gambetta — Rochefort
— Os jesuítas
Estas últimas semanas, em França, têm sido sanguinolentas. Os duelos sucedem-se tão regularmente como as madrugadas; e o primeiro espectáculo que o Sol, o velho e dourado Febo, avista, ao assomar a rósea varanda do Oriente, é um francês em mangas de camisa e de florete na mão, à beira de um arroio ou nas ervas de um prado, procurando varar com arte as vísceras essenciais de outro francês.
Parece que estamos sob o reinado do melancólico Luís XIII, quando, apesar dos éditos, mal tocava às ave-marias, não havia recanto sombrio do velho Paris onde não lampejassem duas espadas cruzadas, ou em tempos da república romântica de 1848, em que dois sujeitos que não concordavam sobre a questão da Polónia, ou divergiam acerca de Jesus Cristo – um considerando-o um imortal filósofo, outro apenas um pequeno Deus sem importância –, corriam a retalhar-se ao sabre, nas sombras do Bosque de Bolonha.
Não pode agora um honesto melro gorjear pacificamente as suas reflexões da alvorada, sem que o venha interromper uma velha caleche a trote donde emergem, soturnos e de negro vestidos, sujeitos com um molho de espadões debaixo do paletó.
Não ficam cadáveres pelos campos; mas a epiderme dos jornalistas e dândis é abundantemente deteriorada.
Duelo de Rochefort com Koechlin; duelo de Laffite, do Voltaire, com o conde de Dion; duelo de Fronsac, do Gil Blas, com o príncipe de Santa Severina; duelo de Lajeune-Villars com Lepelletier, do Mot d'Ordre; duelo em Avinhão, em Montplier, em Rennes, em Lião. Sem contar os duelos do conde de Hauterive, que esta semana se tem batido quatro vezes, ferindo todas as manhãs o seu homem com o mesmo florete entre o pulso e o cotovelo!
Este caso pitoresco faz-me lembrar os «combates do Sr. Paulo».
Não conhecem os combates do Sr. Paulo? É uma curiosa história do Bairro Latino, dos tempos em que ainda alvejava, entre as verduras do Luxemburgo, o vestido de cassa de Mimi. O Sr. Paulo era um discípulo ardente de Proudhon, que costumava ir todas as noites tomar o seu grogue a um café da Rua Jean-Jacques Rousseau, e soltar, com voz rouca de profeta irritado, as frases célebres do Mestre: «Deus é o mal! A propriedade é o roubo! Queremos a liquidação social!»
A sua aparência era hoffmânica; duas longas pernas de cegonha triste, olhos rutilantes numa face ascética e uma gaforina descomunal, crespa, revolta e cor de estopa. De resto, bravo e honesto. Uma noite, o Sr. Paulo instalava-se diante do seu grogue, quando avista sobre a mesa um papelinho pérfido, contendo esta abominável sextilha:
A loura e doce Maria,
Que a ninguém de amores maltrata
Foi avisada outro dia
Que Paulo a vem visitar,
E ei-la que rompe a gritar:
– Depressa!, fechem a prata!
Só Homero, que disse os furores de Ájax, poderia pintar a cólera do Sr. Paulo e os seus repelões à guedelha... Logo ao outro dia tinha descoberto que o deplorável poeta era um sujeito obeso, de olho oblíquo, exalando um cheiro adocicado de sacristia – que saboreava também os seus grogues no café e dirigia um jornal jesuíta – A Palavra. A sextilha tomava, assim, as proporções sociais de uma injúria arremessada pela Igreja contra a revolução. Era a graça caluniando a consciência.
Daqui a um duelo no Bosque de Vincennes... Caminham um sobre o outro de pistola alta. Fogo! A bala do homem d'A Palavra vai cravar-se na anca de um jumento, que a distância retouçava pensativamente a erva; a do Sr. Paulo, essa vai varar o chapéu alto de um dos padrinhos do devoto. Este sujeito franziu consideravelmente o sobrolho.
À noite, um excelente rapaz, Jacques Morot, reaccionário também, abre a porta do café da Rua Rousseau e pergunta para dentro avidamente:
– Então, o duelo? Houve morte de homem?
– Não – respondeu alguém de uma mesa ao fundo. –Houve morte de jumento.
– O quê! Morreu Paulo?
E o Paulo que, ao lado, sorvia galhardamente o seu grogue, ergue-se, de juba eriçada e a injúria no lábio... E daí outro duelo, à pistola também.
Foi no Bosque de Bolonha, esse, ao primeiro cantar da cotovia. A bala reaccionária de Jacques perdeu-se entre as folhagens, mas a do Sr. Paulo lá foi varar o chapéu alto do padrinho – do mesmo, precisamente o mesmo que na véspera, ao lado do beato pançudo, tivera já o seu chapéu atravessado e franzira tanto o sobrolho.
– Compreendo! – rosnou este indivíduo lívido.
E à noite, no café, dirige-se à mesa onde o Sr. Paulo absorvia o seu grogue, exalando o seu socialismo, e acusa-o friamente, «de lhe querer tirar a vida de um modo desleal e infame»!
– Pois atreve-se?... – ruge o Sr. Paulo.
– Sei o que digo: infame e desleal!
– Insolente!
– Garoto!
Novo duelo. Mas então os padrinhos assistiram de longe, estirados entre as ervas altas como lagartos assustados. Por precaução tinham-se recoberto de colchões... E as duas balas, com efeito, perderam-se pela amplidão dos céus. De uma dizia-se no café que fora parar a Pequim; da outra corria que, por um funesto hábito adquirido, andava ainda pelo Bosque de Bolonha, procurando entre os arvoredos o chapéu alto para se alojar.
Tais foram os combates do Sr. Paulo, discípulo de Proudhon.
Os conflitos de honra que têm este final de vaudeville são, por fim, os mais aceitáveis.
Há-de haver sempre duelos. E evidente que, enquanto os jornais publicarem em letra gorda e glorificadora as actas do desafio; enquanto os olhos das mulheres sorrirem ao ferido interessante que atravessa a sala pálido e de braço ao peito, ou o espadachim feliz que retorce o bigode; enquanto na rua burgueses pararem pasmados, murmurando ao ouvido da família: «Lá vai ele! Foi aquele que se bateu!», nem o código, nem o bom senso, nem melífluas máximas humanitárias impedirão jamais que o homem, publicamente ridicularizado ou publicamente injuriado, salte sobre a sua espada, gritando à turba: «Cá vou defender a minha honra!»
Haverá sempre quem consinta em esvair-se em sangue –tendo em redor as aclamações de um circo.
No mais grave dos homens há uma fibra de histrião.
O que convém, pois, à sociedade é que, nestes conflitos impostos pela exigência da vaidade e pelo despotismo do prejuízo, o sangue derramado se limite às três ou quatro gotas que um lenço de cambraia estanca.
No fim, a moralidade dos duelos está toda num dito de Rochefort.
– Tem sido feliz em seus desafios? – perguntava-lhe alguém.
– Felicíssimo. Tenho-me batido vinte e tantas vezes e volto sempre com a consciência serena e uma ferida séria...
Não se pode realmente vir almoçar com a «consciência serena» quando se deixou um homem a agonizar numa poça de sangue; mas é triste também que para se poder gozar, com a alma tranquila, a omeleta do almoço, se deva voltar do campo de ventre rasgado ou com a clavícula em pedaços.
De sorte que o sujeito que quer defender a sua honra a sério por estes meios tem diante de si duas perspectivas amáveis: ou a permanente tortura de um remorso, ou a eterna paz de uma campa; e quando se é muito feliz, como Rochefort, dois meses de cama com uma víscera despedaçada.
Bem hajam, pois, os que nos seus duelos, como no caso do Sr. Paulo, atiram as balas para Pequim ou se arranham ligeiramente nos cotovelos! Compreendem a sabedoria: a sociedade, a vaidade, os jornais, a opinião, as mulheres, pedem-lhes sangue? Bem!, vão a um recanto do Bosque, e extraem-se um ao outro, da ponta do dedo, a gota reclamada pela honra. A sociedade, a vaidade, etc., sorriem satisfeitas; e eles, serenos de consciência, curam-se pondo uma dedeira. Salutar prudência! E são igualmente heróis nas gazetas!
Foi votada na Câmara a amnistia, e sê-lo-á certamente no Senado. Nenhum vestígio, pois, restará da insurreição da Comuna em 1871. As casas ardidas foram reedificadas; há longo tempo que secaram as poças de sangue nas ruas; a hera disfarça poeticamente as ruínas das Tulherias; os fuzilados de então são hoje terra fértil onde a erva cresce, alta e vasta: os degredados, os fugitivos, reentram na vida legal; a questão da amnistia, que se arrastava nas controvérsias dos jornais como um farrapo sinistro de guerra civil, é varrida para o lixo; e sobre aquela pavorosa loucura cai enfim solenemente uma lápide de esquecimento. Viva a França!
Tudo isto é excelente: não haveria mesmo o direito de vencer, se não houvesse o direito de perdoar.
O Sr. Grevy, que restituíra a pátria a centenares de comunistas por compaixão – não podia deixar outros centenares no degredo, por legalidade. Não era lógico que os que fuzilavam os dominicanos pudessem fumar o seu cigarro no Bulevar, enquanto Rochefort, que a Comuna condenou à morte, sofria o melancólico exílio de Genebra, e Trinquet, reabilitado publicamente por Gambetta, fabricava tamancos nos presídios da Nova Caledónia. Mas dá-se uma circunstância singular: há três meses o ministro Freycinet declarava, entre as aclamações da maioria, que a França não estava suficientemente pacificada, nem a república talvez bastante forte, para deixar voltar a legião da Comuna, e ontem o mesmo Sr. de Freycinet, aos aplausos da maioria, afirmava que era tão sólida a unidade da república, tão completa a quietação dos espíritos, que não se podia adiar por mais um dia esta larga absolvição das barricadas de 1871.
Em Março a amnistia era um imprudência, em Junho é uma necessidade! Noventa dias não são suficientes para que mudassem assim tão radicalmente a opinião da França e o interesse da república. Portanto, aqui, como se dizia nas óperas cómicas da minha infância, há um mistério. Qual é, pois, esse mistério? E a vontade do Sr. Gambetta. Foi ele, esse todo-poderoso, esse Deus de Israel, esse Luís XIV da república, esse augusto dono de França – que assim o decidiu. Ele via que a recusa da amnistia o despopularizava já na forte maioria da democracia: percebia que ia sendo aí considerado como a encarnação mesma da república burguesa e o continuador do doutrinarismo do Sr. Thiers; sentia que os seus bairros proletários, Montmartre e Belleville, já lhe retiravam os votos e a confiança para os darem a Clemenceau.
Gambetta reconhece bem que, hoje, a burguesia já não é um terreno suficientemente sólido para edificar nele uma fortuna política, é na força do proletariado que se quer apoiar – e, portanto, resolveu, como um Jeová prudente, readquirir a devoção do seu povo, restituindo-lhes os profetas exilados. E aí está como a amnistia não é um grande acto de reconciliação pública, mas uma astuta manha do ditador, para não ser perturbado na lenta jornada que o vai levando à presidência da república, se não a um cesarismo jacobino. Para mudar a opinião do ministério Freycinet, bastou-lhe ordenar; e para convencer a câmara, bastou-lhe falar.
No dia da discussão do projecto da amnistia deixa melodramaticamente a sua cadeira de presidente, e de gravata branca, rubro como uma papoula, com a sua cabeleira solta à maneira de uma juba, aparece na tribuna; e não creio que desde os Gracos, ou desde Mirabeau, jamais a palavra de um homem revolvesse tanto um país! Todos os jornais, os mais hostis, reconhecem que nunca Ele fora tão poderoso.
Vai o E maiúsculo, porque parece que se trata verdadeiramente de um Deus.
Na rua vê-se gente de olho esgazeado, e arrepiada de emoção, murmurando: Gambetta falou! Assim se devia dizer em Israel, quando corria voz pelas tendas dispersas das tribos que Jeová perorava de entre a sua sarça ardente. Eu não o ouvi. O seu discurso lido aqui no jornal afigura-se-me uma prosa ressoante e oca como um tambor, mais própria da ênfase castelhana que da língua lúcida e disciplinada em que Voltaire escreveu. Parece, porém, que a sua formidável figura, os acentos pungentes da sua voz cativante, soltando os grandes nomes de França e pátria e república, os seus gestos de apóstolo possuído do espírito; maioria de pé, numa aclamação, como nos dias patéticos da Convenção; a direita muda e aterrada, as galerias num êxtase vibrante – tudo isto formou um quadro grandioso, quase heróico.
Eu espero, para o admirar, que um mestre o imortalize na tela e o popularize pela litografia. Até lá, por Júpiter, sustento que esta arenga não me parece do meu Gambetta, do antigo e forte Gambetta; dir-se-ia antes ser do copioso Odine Barrot. Não vejo aqui as ideias que fundam, nem as palavras que ficam. O que abunda, sim, e o emprego triunfante do pronome pessoal eu.
«Eu consultei o país! Eu disse à Europa! Eu faço! Eu quero!» E assim se desfaz, enfim, o equívoco enorme; é ele realmente que governa, possui a França: o Sr. Grevy está ali como uma figura ornamental; o Sr. de Freycinet e o seu ministério são o coro explicativo; a câmara um mero serviço de votação. Só ele fica acima destas fracções, como a mesma alma da república. E pela segunda vez, desde Mazarino, com respeito o digo, um italiano é o senhor das Gálias.
Não creio, porém, que esta amnistia, tão generosamente concedida pelo Sr. Gambetta, desarmará o socialismo, e o reconciliará com a república conservadora. Espanto-me mesmo que haja velhos jornais, cobertos de experiência e de cãs, que o acreditem, com a ingenuidade de tenros entusiastas. E o mesmo Gambetta parece crê-lo quando exclama que, eliminada esta questão irritante, haverá só um república e uma só França.
Retórica. A questão da amnistia era decerto, nas mãos da esquerda intransigente, uma arma útil: «Vede essa república de conservadores, que deixa nas galés os vossos irmãos, os vossos maridos!» Este grito ia direito à indignação dos homens e à sensibilidade das mulheres.
Para resolver o operário era decerto um óptimo grito: mantinha-o em desconfiança e em hostilidade; e nas eleições próximas levaria decerto a turba proletária para os candidatos do socialismo. Mas perdida esta arma contra a república do justo meio, esta durindana brilhante do Rappel e do Mot d'Ordre, restam inumeráveis máquinas de guerra no vasto arsenal da questão social. Basta por exemplo pôr em posição a famosa catapulta da separação da Igreja e do Estado, para abalar a frágil muralha do gambettismo.
Os conservadores, para se conservarem a si mesmos, terão de ceder: e de concessão em concessão, como um sapo aos saltinhos sucessivos, irão cair na goela escarlate da serpente socialista. Todas as medidas destes últimos dois anos, «depuramento do funcionalismo, expulsão dos jesuítas e volta dos comunistas», têm sido exigências da extrema-esquerda, do mundo do Rappel, da Justice e do Mot d'Ordre.
E outras reclamações virão – todas necessariamente satisfeitas – e cada uma tirando um cabelo a Sansão e uma parcela da sua força à república... A questão está colocada entre o proletário e o burguês. E Clemenceau contra Gambetta. E isto que é o socialista Clemenceau matará fatalmente aquilo que é o jacobino Gambetta: e isto que é o sapateiro Trinquet eliminará mais tarde aquilo que é o filósofo Clemenceau...
Mas por estes dias ao menos, esta república moderada está sólida. Tem por si a burguesia: os burgueses de hoje são a antiga população das Gálias – que já no tempo de César amava sobretudo as palavras sonoras e as espadas atrevidas. Por isso a burguesia se sente segura apoiando-se na oratória de Gambetta e no sabre de Gallifet.
Para nós, que não somos franceses, preparam-se-nos horas de jovialidade, porque vêm aí os exilados e à frente Rochefort. Se o grande panfletário, o gaiato sublime como lhe chamou Michelet, o ardente sagitário, não perdeu nas amarguras do desterro a sua verve prodigiosa, o ardor acerado, as luminosas flechas que feriram de morte o império – por Júpiter! – vai ser curioso vê-lo erguer-se no Bulevar, como nos dias inolvidáveis da Lanterna, com a face pálida e a sua gaforina de Satanás, heróico e ágil diante do passado, do presidente Gambetta.
O jornal que vai fundar chama-se o Intransigente. Já é bom! E vem azedado por dez anos de exílio injusto, porque (ninguém o ignora) foi a Lanterna e a sua luta contra o império que o levaram à Nova Caledónia por sentença de um conselho de guerra, composto dos velhos generais de César, e não a sua participação na Comuna, que ele combateu implacavelmente e que o condenou à morte. Por isso ele permaneceu querido de toda a França, esse homem que tem o espírito de Voltaire, a temeridade heróica, a honradez de um Bayard; este marquês de Rochefort e de Luçay, que as duquesas chamam o primo Rochefort, generoso paladino dos humildes, que foi durante os últimos anos de Napoleão a alegria viva da França e uma das honras da liberdade. Os seus mesmos inimigos o admiram: e foi por terror ao seu espírito que a república conservadora o manteve no exílio perpétuo, excluído de todos os perdões. E vem aí! Positivamente, vamos rir.
Os comunistas entram e os jesuítas saem. Nada me parece mais insensato que esta expulsão.
Deus sabe que eu não amo os jesuítas: tudo neles me é antipático – a sua face descaída e olho oblíquo, a roupeta lúgubre, a sua moral, a sua abominável suma teológica, a sua ciência seca e hierática, o seu frio estilo de arquitectura, a sua maneira de enriquecer, com contabilidade escrita em grego, a sua grosseira e equívoca idolatria pela Virgem Maria, a sua organização tenebrosa e conspiradora, que faz assemelhar a Companhia a um carbonarismo teocrático. Mas dispersá-los parece-me singularmente impolítico, ilógico e pueril; se se pretende destruir a sua funesta influência na sociedade francesa – então é necessário expulsar o clero inteiro, pois ninguém ignora que a Igreja hoje está totalmente penetrada do espírito jesuítico. O catolicismo é o jesuitismo.
Quem governa a Igreja não é Leão XIII, o Papa Branco é O Papa Negro, o padre Beichx. E esta solidariedade com a Companhia – o clero regular aceita-a, reveste-se dela como de uma insígnia, e considera-se ferido pelas leis dirigidas contra o Instituto de Santo Inácio. Se se quer eliminar o ensino dos jesuítas, fatal à alma das gerações novas, recaímos na mesma necessidade lógica de suprimir todo o ensino clerical, semelhante, paralelo, ao que emana dos jesuítas. De que serve fechar três ou quatro estabelecimentos da Companhia – se fica todo um clero compacto para os substituir como pedagogos, como conspiradores e como inimigos da democracia?
Além disso os jesuítas expulsos das suas grandes residências irão ensinar particularmente, dispersos pelas cidades e pelos campos; em lugar da roupeta vestirão a quinzena – e nem por isso o seu ensino será mais democrático. E se ainda lhes forem arrancados os livros da escola – lá ficam os dominicanos, os maristas, os lazaristas, os franciscanos, os irmãos Cristão, e outros inumeráveis para ensinarem o mesmo com a exaltação de quem espalha uma ideia perseguida.
É pueril; os republicanos que hoje governam riam quando o império imaginava extinguir o socialismo dispersando a Internacional; e recaem no mesmo erro pensando aniquilar o clericalismo fechando três conventos de jesuítas!
Será necessário eliminar as mães devotas e os pais católicos; proibir que haja almas que por debilidade, ou religiosidade terna, se precipitem para as lições da mística de S. Tomás como para o melhor alimento terrestre. Se o ensino teológico é perigoso oponha-se-lhe o ensino científico. Esmaguem o padre com o filósofo. Mas não é rasgando uma roupeta que se reprime um ideal.
E depois, para quem ama realmente a liberdade, é repugnante estar lendo todos os dias nos jornais que já os jesuítas e as outras congregações ameaçadas começam a encaixotar os seus livros, a enfardelar tristemente os seus trapos, a despregar um ou outro painel da sua cela, porque se aproxima o dia 29, em que dois gendarmes de espadão à cinta virão arrancá-los aos conventos que são seus, edificados pela sua diligência, pagos com o seu metal e tantos anos habitados pela sua devoção.
Há nisto um sabor desagradável à revogação do Edicto de Nantes, à expulsão dos judeus, a missionários apupados pela população chinesa.
Há dias vi um velho frade franciscano, assustado e melancólico, comprando timidamente uma maleta; havia tanta amargura no olhar que o pobre mendicante dava àquele saco de couro que ia ser seu companheiro de exílio – que me veio uma cólera, uma revolta contra o Sr. Jules Ferry e o seu racionalismo prudhonesco.
Ora nada mais impolítico que provocar este sentimento: o frade torna-se mais interessante; e os fracos, os sentimentais, os religiosos, as mulheres, são atraídos para este exilado, este mártir errante, esta vítima dos Dioclecianos de chapéu alto, que se lhes afigura a encarnação mesma do crucificado.
Eu não sou um devoto, mas parece-me ímpio exilar aqueles que não têm as nossas opiniões. E uma república que expulsa uma classe inteira de cidadãos por acreditarem na graça, acenderem luzes à Virgem Maria e considerarem o conde de Chambord como um ser providencial e um messias forte – mostra uma falta de senso político, e pratica um vergonhoso abuso da força.
Mas suponhamos que eles são grandes criminosos. Pois bem! Estamos agora num momento de demência pública, perdoou-se ontem àqueles que consideram Deus um tirano; perdoe-se hoje àqueles que consideram Luís XVI um santo. E aqui está o que eu humildemente proporia – que a amnistia dada aos comunistas se estenda às congregações religiosas!
Ainda nesta carta lhes não falo da Inglaterra. A culpa é toda dela. Caso extraordinário; há já semanas que este grande e amado país não produz um acontecimento, um escândalo, um livro, um sistema filosófico, uma religião, uma máquina, um quadro, uma guerra ou um dito! Está nesse brando repouso a que se abandona sempre aos primeiros calores de Junho. Deixemo-la descansar reclinada sob a.sombra da frondosa faia, nestes ócios que lhe faz a suprema liberdade na suprema força.
Eça de Queiroz
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