eça de queiroz — cartas de paris (VI)
VI
A França e o Sião
A França começou enfim a devorar Sião. Este ingénuo, amável e polido povo recebeu, há quatro ou cinco dias, um ultimato em que era intimado a entregar, sem demora, à França uma imensa porção do seu território e uma não pequena porção do seu dinheiro. Segundo a prudente maneira dos Orientais, o Sião nem consentiu, nem recusou. Com aquela mansidão e humildade que tão própria é de budistas e de fatalistas, replicou que não compreendia bem as exigências da França, que apetecia a paz, e que por amor dela estava disposto a dar algum dinheiro, mas não tanto, e a abandonar algum território, mas não tão vasto. Outrora, quando os costumes internacionais eram mais doces e complacentes, e os povos orientais gozavam ainda (por menos conhecidos) de uma feliz reputação de lealdade, esta discreta resposta teria dado motivo a novas negociações, novos telegramas, infindáveis cavaqueiras de embaixadores.
Hoje, as maneiras internacionais são mais bruscas e rudes: os países do Oriente têm uma deplorável fama de duplicidade e falsidade; e a França, sem se deter em mais explicações com o infeliz Sião, bloqueou-lhe as costas e fez marchar sobre as províncias do interior as suas tropas coloniais da Cochinchina.
Perante estes actos, tão decididos, o furor dos Ingleses tem sido medonho. Mas é um furor unicamente de políticos, de jornalistas e de comerciantes que tinham grandes negócios com o Sião. O povo, a massa do povo, permanece indiferente. Não tem sentimento nenhum pelo Sião, não acredita que ele seja indispensável à felicidade da Inglaterra, não percebe porque a Inglaterra cobice ainda mais terras no Oriente, e vê a França cair sobre o Sião sem que isso lhe irrite o patriotismo ou lhe torne amarga a cerveja. Ora, em Inglaterra, que é uma verdadeira democracia, quando o povo se desinteressa de uma questão, os políticos e os jornalistas têm também de a abandonar, porque aí não se criam artificialmente correntes de opinião; e o Governo que provocasse um conflito europeu sem se apoiar num forte entusiasmo popular não duraria mais que as rosas de Malherbe, que, como todos sabem, duram apenas o espaço de uma manhã.
Não!, não há hoje já a possibilidade que duas nações europeias se batam por causa de terras coloniais. Os Europeus só se movem por interesses ou sentimentos europeus, e só por eles arrancam a espada.
Para as questões de colónias lá estão os congressos e os tribunais de arbitragem. E uma senhora que ultimamente, num salão, considerava como a coisa mais pueril e mais grotesca que duas nações tão elegantes como a França e a Inglaterra, se batessem por causa de bichos tão feios como os siameses – estabelecia, sem o saber, a verdadeira doutrina do século. Quando a França e a Inglaterra não vieram às mãos por causa do Egipto, que é a jóia do mundo, a terra entre todas preciosa pela qual se têm dilacerado todos os povos desde o Dilúvio – não há receio que jamais duas nações da Europa quebrem a doce paz por causa de interesses orientais.
De sorte que todas as declamações dos jornais sobre guerra são um mero desabafo de retórica heróica. E como não há o menor perigo (e eles perfeitamente o sabem) de se chegar à boa cutilada, não é desagradável, nestes ociosos dias de Verão, roncar de alto, com o sobrolho franzido e a mão nos copos do sabre. Assim se vai gastando, com arreganho, alguma tinta – sem medo que se venha a gastar sangue.
Em todo o caso, nestas rivalidades coloniais entre a França e a Inglaterra, eu penso que a Inglaterra tem, em princípio, mais direitos. Quando ela se apodera de um desses desgraçados remos do Oriente (como a Birmânia, há pouco) sabe ao menos como há-de utilizar e valorizar a sua conquista.
Em primeiro lugar tem logo um número limitado de homens, enérgicos e empreendedores, que, ou sós, ou com as famílias, embarcarão para ir povoar, colonizar, cultivar, industrializar, por todos os modos explorar a nova terra inglesa. Depois tem uma prodigiosa quantidade de produtos fabris para exportar para lá, e lá vender, sem concorrência. Depois tem uma colossal frota mercantil para fazer com a nova possessão um comércio activo e contínuo. E enfim tem uma formidável frota de guerra para defender a sua aquisição. A França, essa, não tem nada disto – nem frota, nem produtos, nem homens. Não tem sobretudo homens, porque a população da França não chega mesmo para a França. Quando ela se apossa violentamente de Tunes ou do Tonquim, o único acto colonial que depois pratica é remeter para a recente colónia alguns soldados e muito empregados públicos. A França faz conquistas para exportar amanuenses. No Tonquim, por exemplo, ela possui, no solo, ocultas riquezas maravilhosas; mas não tem colonos que as vão explorar. A expansão colonial da França não dá assim lucro nenhum, ou alargamento à civilização geral. Apenas promove, através dos mares, uma deslocação de amanuenses aborrecidos e enjoados. Ao contrário, cada palmo de chão que a Inglaterra ocupa entra no movimento universal da indústria e do comércio.
A Inglaterra tem virilidade colonial e a França só impotência. Quando um homem novo, robusto, activo, penetra numa aldeia e rouba uma linda rapariga, comete decerto um acto escandaloso, e que todos devem condenar, com severidade. Mas esse valente homem tem uma justificação, um motivo que se compreende (e com que mesmo se simpatiza): e se, desse enlace, lamentavelmente ilegítimo, nascerem filhos são, fortes, activos, há ali um positivo lucro para a humanidade e para a civilização. Quando, porém, é um velho de oitenta anos, regelado, caquéctico e a babar-se, que penetra na aldeia e rouba a linda moça, estamos então diante de um escândalo que não tem justificação possível. É um escândalo ignominiosamente estéril. Nada lucra com ele a humanidade, nem o velho. E só podemos cruzar os braços com espanto e indignação, e exclamar: «Para que quer aquele velho aquela moça?»
E é o que exclamamos agora, também, cruzando os braços: «Para que quer esta
França este Sião?»
Eu tenho um amigo que esteve nesse pobre Sião, hospedado pelo rei, no palácio, e conta detalhes bem pitorescos.
Todo o reino de Sião pertence ao rei, tão completamente como aí uma fazenda de café pertence ao fazendeiro. O rei é o dono do solo, dos edifícios, dos habitantes e da riqueza dos habitantes. Pode, querendo, doar, hipotecar, trocar ou vender o reino com tudo o que está dentro das fronteiras.
É uma posse agradável. O povo, por seu lado, considera o rei não só como seu dono, mas como seu deus. E a fórmula religiosa (como se disséssemos o artigo da constituição) que define as relações e deveres entre povo e rei é esta: «Do rei o povo recebe a vida, o movimento e o ser.»
O rei tem um nome imenso, chama-se Prabat-Tomedetch-Pra-Parammdir, etc., etc., etc. Todo ele não caberia em cinquenta linhas. E de cada vez que se fala ao rei (só os nobres gozam esse privilégio) é da etiqueta invocá-lo com o nome todo.
Uma conversa com sua majestade dura assim longas e longas horas, por causa do nome. De facto, a mais laboriosa e pesada ocupação da corte, é pronunciar o nome de el-rei.
Pessoalmente o rei é um homem excelente, cultivado afável, gracejador, bondoso. E mesmo bonito, para siamês.
E as suas maneiras têm nobreza. O que o estraga é o seu ilimitado poder, a sua posição de divindade, e a prodigiosa, inverosímil adulação que o cerca. Assim é uma regra (e cumprida com fervor) que todo o siamês que tem uma filha bonita a dê de presente ao rei. As suas concubinas oficiais excedem em número as de Salomão. São aos milhares. E o rei, apesar de novo, de não contar ainda quarenta anos, já tem cento e oitenta e tantos filhos! Tudo isso, esposas e filhos, vive no palácio, que oferece as proporções de uma vasta cidade. Há ruas inteiras de esposas! Há bairros inteiros de filhos! Toda esta imensa família vive com um luxo imenso, e o rei, apesar de dispor de todas as riquezas do Sião, como suas, está horrivelmente endividado em Londres. As vezes, porém, ele próprio procura fazer economias: e foi assim que, no momento em que o meu amigo estava no Sião, el-rei deu ordens para que, por economia, se não ferrassem mais os cavalos da cavalaria. Havia cem cavaleiros, eram cem ferraduras poupadas. Eis aqui um traço bem siamês!
O rei nunca sai do palácio, não conhece o seu reino, mal conhece a sua capital, que é Banguecoque. Quando por acaso dá um passeio, é uma grande festa, uma grande gala. As ruas são aplainadas e areadas; pintam-se as casas de fresco; os canais (porque Banguecoque assemelha-se a Veneza) levam uma rápida limpeza; toda a população se lava, se alinda, se cobre de jóias; e para que não chova, celebram-se preces nos templos. Depois o rei recolhe, e por muitos e muitos meses Banguecoque recai no usual desleixo e porcaria. Só no palácio há asseio. De resto, o palácio é que é a nação.
Mas basta de Sião! A culpa é de Paris que não se quer ocupar senão deste remoto reino cuja existência ele, ainda há oito dias, ignorava. Porque o Francês, e sobretudo o Parisiense, continua a ser aquele que Goethe descreveu – «um indivíduo de muitos cumprimentos, que não sabe geografia». É talvez mesmo para ensinar geografia ao povo francês que o seu Governo empreende conquistas. Para que, fora da Europa, ele conheça uma nação, o Governo previamente faz dela uma colónia.
Assim se irá alargando a instrução geográfica em França. E, com as aquisições coloniais feitas neste século, já o Francês, quando se lhe perguntar quantas são as partes do mundo, poderá (o que outrora não podia) responder com um saber exacto e forte:
– Cinco: a Europa, a Argélia, Tunes, o Tonquim. Sião!
Eça de Queiroz
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