ramalho ortigão — as farpas (1877)
RAMALHO ORTIGÃO - EÇA DE QUEIROZ
AS FARPAS
CHRONICA MENSAL DA POLITICA, DAS LETRAS E DOS COSTUMES
NOVA SERIE TOMO VIII
Janeiro a Fevereiro 1877
Ironia, verdadeira liberdade! És tu que me livras da ambição do poder, da escravidão dos partidos, da veneração da rotina, do pedantismo das sciencias, da admiração das grandes personagens, das mystificações da politica, do fanatismo dos reformadores, da superstição d'este grande Universo, e da adoração de mim mesmo.
P.J. PROUDHON
SUMMARIO
A actual situação politica. Conceituosa parabola das moscas e das maselas. O partido revolucionario e o partido conservador. A funcção de um e outro d'estes partidos. Anarchia ou retrocesso. Extincção do partido revolucionario por falta de idéas. Mancommunação conservadora. Philosophica historia de uns almocreves e de um pipo de vinho. A profunda synthese do pipo do Estado. (…)
A situação politica...
Mas, perdão — antes de encetarmos este assumpto, uma pequena historia:
Era uma vez um velho burro. Fora madraço e manhoso. Não conquistára amigos porque os não merecia. Tinham-o lançado á margem no fim da vida. Principiou a viver ao acaso, pelos montes. Um dia achava-se defronte de um vallado, estacado ao sol sobre as suas quatro patas, inerte, immovel, olhando para um cardo secco com os seus grandes olhos redondos e encovados em orbitas esqueleticas, pensando nas vicissitudes da vida e procurando arrancar do seu cerebro, para se consolar, algumas idéas philosophicas.
Passou por elle e deteve-se a contemplal-o um joven asno, no viço das illusões, cheio de amor e de zurros, de alegria e de coices. A vetusta ossada angulosa do ancião parecia furar-lhe a pelle resequída e aspera. Um espesso enxame de moscas cobria-lhe as mataduras do lombo e dava-lhe o aspecto de ter um albardão feito de zumbidos e d'asas sobre um fundo de missangas pretas e palpitantes,--coisa rabujosa á vista.
— Sacode esse mosqueiro, disse-lhe o burro novo. Dar-se-ha o caso de que, á similhança do homem, deixasses tambem tu atrophiar o precioso musculo que ahi tens na face para por meio d'elle abanares a orelha e moveres a pelle?... Sacode-te, bestiaga!
Ao que o lazarento, pausado, retorquiu:
— Não sabes o que zurras, joven temerario! O destino de quem tem maselas é que o mosqueiro o cubra. As moscas que tu vês, e de que o meu cerro é a estalagem com mesa redonda, são moscas fartas, teem a mansidão abundante dos estomagos cheios. Se eu as sacudisse, viriam outras,— as famintas, de ferrões gulosos, que zinem como frechas, pousam como causticos, mordem como furunculos. As que tu vês prestam-me um serviço impagavel:- livram-me das que podem vir; são o meu xairel benigno e suave, o meu arnez, a minha couraça. Quando te chegar a idade de seres pasto de moscas (e breve te soará essa hora porque a mocidade é, como a herva, uma ephemera transição entre o alfobre da meninice e a palha da edade madura); quando te chegar o teu dia, lembra-te, asninho imprudente, d'este conselho amigo de um burro velho, que não aprende linguas, mas que tem a experiencia que vale tanto como o ouro: Nunca sacudas mosca desde que creares masela! Teme-te dos papos vasios das revoadas novas. Papos cheios não só não mordem mas até empacham! Comprehendeste, burrinho, a philosophia da minha inercia?
Revertamos agora, como vinhamos dizendo, á situação politica.
Em toda a sociedade em movimento ha dois unicos partidos: o partido conservador e o partido revolucionario.
A funcção do partido revolucionario, qualquer que seja o seu nome--republicano, socialista, federalista, fourrierista, proudhonista, positivista, etc.— é transformar a ordem estabelecida, modificando as condições da civilisação no sentido de um mais rapido progresso.
Para este fim o partido revolucionario agita constantemente por meio de idéas novas as opiniões preconcebidas.
Como, porém, não está ainda definido o programma geral e harmonico da revolução, como a tendencia progressiva das multidões indisciplinadas se basea no sentimentalismo esteril ou no phantastico ideal methaphysico dos phraseadores eloquentes, succede que todo o esforço revolucionario representa para a sociedade um perigo de desordem, de incoherencia e de anarchia.
A funcção do partido conservador é a manutenção da ordem contra todas as invasões que directa ou indirectamente ameacem a integridade da organisação existente. Em todas as velhas sociedades os governos são por essa rasão, os inimigos natos do progresso. A evolução progressiva da humanidade realisa-se, a despeito d'elles, pela elaboração irresistivel das idéas fora da esphera official, sob a acção das descobertas da sciencia ou das suggestões da arte. O mais que fazem os governos é submetterem-se ás transformações sociaes que a solução de cada novo problema resolvido pela sciencia impõe á existencia dos povos. Os governos, portanto, sempre que uma forte effervescencia intellectual não agita a sociedade e os não abala constantemente na eminencia do seu posto forçando-os a concessões successivas, tendem ao retrocesso.
A civilisação não é na orbita politica senão o justo equilibrio das forças resultantes d'essas duas tendencias: a tendencia retrograda na ordem, a tendencia anarchica na revolução.
Em Portugal o que succede?
A vida intellectual é extremamente debil. A sciencia não tem cultores desinteressados e ardentes, a acção da arte sobre a aspiração dos espiritos é nulla.
O resultado é que os partidos de opposição, não encontrando nos phenomenos da vida nacional a profunda expressão implacavel de novas necessidades a que os governos tenham de amoldar-se, acham-se naturalmente desarmados das grandes rasões que reptam os governos a progredir ou a abdicar.
Em taes condições o partido revolucionario dentro da milicia politica, partido fabricado pelos proprios governos com a corrupção do suffragio,- sendo uma pura convenção, uma fixão constitucional, uma expressão rhetorica, sem raizes na consciencia e na vontade popular,-acabou por desapparecer inteiramente do nosso systema representativo. Ha muitos annos que a revolução não tem quem a represente no parlamento portuguez.
Ha, todavia, uma maioria parlamentar e uma opposição composta de varios grupos dissidentes. Estes grupos são fragmentos dispersos do unico partido existente - o partido conservador - fragmentos cuja gravitação constitue o organismo do poder legislativo.
Estes partidos, todos conservadores, não tendo principios proprios nem idéas fundamentaes que os distingam uns dos outros, sendo absolutamente indifferente para a ordem e para o progresso que governe um d'elles ou que governe qualquer dos outros, conchavaram-se todos e resolveram de commum accordo revesarem-se no podler e governarem alternadamente segundo o lado para que as despesas da rhetorica nos debates ou a força da corrupção na urna fizesse pesar a balança da regia escolha. Tal é o espectaculo recreativo que ha vinte annos nos esta dando a representação nacional.
Imaginem meia duzia de almocreves sequiosos que acham na estrada um pipo de vinho. Como nenhum d'elles tem mais direito que os outros a beber do pipo, combina-se que cada um d'elles ponha a bocca ao espicho e beba em quanto os pontapés dos outros o não contundirem até o ponto de o obrigar a largar as mãos da vasilha para as apertar na parte ferida pelos pontapés applicados pela companhia que espera. É exactamente o que ha muito tempo tem sido feito pelos partidos portuguezes com relação ao usofructo do poder que elles acharam na estrada, perdido.
Chegou finalmente a vez de pôr o pipo á bocca um partido excepcionalmente valoroso de sede e inconfundivel de fibra. Este partido não desemboca o pipo por mais que lhe façam. Protestações escandalisadas, de almocreves, retroam.
— Este partido abusa!
— Isto não vale!
— Isto não é do jogo!
— Elle esvasia o pipo!
— Larga o pipo, pipa!
— Larga o pipo, pimpão!
— Larga o pipo, ladrão!
E incitam-se uns aos outros até á ferocidade:
— Chega-lhe rijo!
— Mais! que lhe dôa bem!
— Rebenta-me esse ôdre!
— Racha-me esse tunel!
— Ah! cão!
O partido, porém, continua sempre a beber, e é insensivel a tudo: á dor, ao insulto, ao chasco, ao improperio, á graça pesada, á insinuação perfida e á alusão venenosa!
Em vista de uma tal pertinacia, que nós mesmos somos forçados a taxar de irregular, os partidos em expectativa do pipo, confederam-se, ferem o pacto da Granja, constituem-se n'um só partido novo, - n'uma só bocca para o pipo. Fazem um programma, redigem um manifesto, vão de terra em terra pedindo ao paiz que intervenha. Precisamente lhes occorreu n'esse momento que o pipo tem dono! que é do paiz o pipo!
Instado a intervir pelos pactuantes da Granja, pelos signatarios do manifesto, pelos auctores do novo programma, pelos oradores dos meetings revolucionarios, pelos jornaes opposicionistas, o paiz responde-lhes:
Lestes a historia do sabio burro lazarento contada pelas Farpas? Eu sou esse burro. Vós sois a revoada das novas moscas pretendendo expulsar a revoada velha. Ora, moscas por moscas - sendo meu destino que ellas sempre me cubram e me comam - prefiro as antigas moscas saciadas ás novas moscas famintas.
Deixae-me em paz. E notae que eu nem sequer vos abano as orelhas, — que é para não bolir comigo!
•
As Farpas", Outubro (1888)
Em consequência da condenação da praça do Campo de Santana, foi em Sintra que desta vez se realizou o grande acontecimento anual do sport tauromáquico, a tourada de Tinoco, a qual se pode chamar o Grand Prix de Lisboa.
Com o caminho de ferro, que presentemente a prende à capital por um breve e cómodo passeio, Sintra mudou muito de aspecto. Ao domingo, principalmente, a multidão trazida pelos comboios de recreio dá-lhe um ar popular de festa suburbana no Beato, nas Amoreiras ou no Campo Grande.
À noite, porém, com a partida do último trem, a vila esvazia-se outra vez. Ao quente burburinho do povo, ao orneio dos burros, às risadas das espanholas, sucede-se o silêncio cavo do vale. A névoa, que lentamente desce da serra., limpa o ambiente da poeira impregnada das exalações da cerveja, do vinho de Colares e do peixe frito. E quando a lua desponta por cima dos castanheiros, esse astro tantas vezes invocado pelo velho lirismo da localidade, não hesitaria em reconhecer na sua decantada serra, no alcantilado relevo da penedia, nas ameias do castelo dos Mouros, na densa espessura dos arvoredos, no murmúrio da água por entre os musgos, no cheiro das giestas húmidas de orvalho, o éden de Childe Harold.
Na segunda-feira pela manhã constata-se que o povo, apesar de tudo quanto as classes cultas receavam da capacidade do seu contacto, não levou consigo nada da antiga Sintra. Cá ficou, onde estava, o real paço, com as suas lindas janelas de dois arcos, manuelinas, em troncos podados; a sua bela colecção de azulejos de tipo árabe, de tipo flamengo e de tipo italiano; o seu cárcere de Afonso VI, a sua sala dos cisnes e a sua sala das pêgas, cuja lenda, Garrett tão encantadoramente narrou nas lindas trovas.
Era uma pega no paço
Que El-Rei tomara caçando...
Na Regaleira os frondosos castanheiros continuam a ensombrar o mais lindo terraço que tem a serra.
Em Seteais não deixou de crescer a erva no terreiro de correr touros e de jogar as canas no tempo do marquês de Marialva, e pelo arco triunfal, no pedantesco estilo pombalino, entra-se agora como outrora para a célebre quinta tão melancolicamente devastada nas alamedas, nos lagos, nos mármores das estátuas e nos arabescos de murta dos seus velhos jardins ingleses.
Na Penha-Verde permanece o Monte das Alvíssaras com as árvores estéreis de D. João de Castro e as ermidas revestidas dos lindos embrechados do século XVI.
Na serra, entre o convento dos Capuchos e o castelo dos Mouros, o palácio da Pena, espera, insensível, que a licitação em hasta pública ou o acordo amigável entre os herdeiros de D. Fernando decida a quem aquele senhorio tem de pertencer.
A propriedade de Monserrate, tão célebre pelas festas principescos que no principio do século aí deu William Beckford, como pelo quási lúgubre encerro em que hoje a sequestra da convivência social o Sr. Frank Cook, Visconde de Monserrate, seu actual possuidor, vai-se alastrando cada vez mais, ameaçando absorver tudo, porque o Sr. Cook embirra de avistar das suas janelas uma copa de pomar, um muro de quinta, ou um telhado de casa, a que ele não possa mandar dar pelo seu arquitecto, pelo seu decorador ou pelo seu jardineiro, a linha e a cor mais adequada para pôr a paisagem circunstante em harmonia com os princípios da sua estética ou com os caprichos do seu temperamento.
Nos prados de luzerna da Penha-Longa continuam a pastar tranquilos os carneiros e as vacas de luxo, que dão a esta quinta, com os seus estábulos e com as suas oficinas rurais, o grande ar de uma granja inglesa.
Finalmente, na fonte da Sabuga vai correndo sempre, férrea e desnevada, a cristalina água da serra. Fabricam-se como antigamente as queijadas da Sapa, tão gratas ao paladar de Lorde Byron. Abunda o bom leite, a manteiga fresca, as ameixas, os pêssegos, os vinhos palhetes de Colares, as rosas de D. Maria e os amarantos de Bernardim Ribeiro. Na frescura das velhas matas, no doce murmúrio das águas correntes, na suavidade da luz coada pela verdura das alamedas, durante os lentos passeios solitários sobre o solo fofo de folhagem, por entre as moitas dos fetos e das hortênsias, uma vaga palpitação de saudade parece errar com o perfume da flor das madre-silvas e da seiva dos castanheiros, como se à prosaica vilegiatura dos nossos dias alguma coisa se mesclasse dos poéticos ócios da corte de D. João II e de D. Manuel, envolvendo na azulada neblina da montanha os vagos e difusos fantasmas brancos das infantas D. Maria e D. Beatriz, das suas damas e dos seus artistas, de Paula Vicente, de Luísa Sigeia, de Bernardim Ribeiro, de Gil Vicente, de Garcia de Resende, de Luis de Camões.
A decoração humana tem de ser aqui completamente diversa da do Ribatejo. Por baixo das árvores dos Pisões, no perfume das Madre-silvas e das rosas chá, entre o murmúrio das águas e o gorjeio das cotovias, o campino, de cinta e colete encarnado no cavalo lanzudo, ferrado à ligeira, de sela semi árabe, e chairel de pele de cabra tem o ar nostálgico de se arrepiar de frio e de bocejar de tédio.
Os divertimentos que em Sintra condizem com os aspectos da natureza são os jogos ingleses de jardim, os concursos hípicos, as corridas de cavalos, as batalhas de flores.
A temporada deste verão foi excepcionalmente fértil em diversões desse género. Não se chegaram a realizar os concursos hípicos, os quais em toda a Europa têm tomado um tal incremento entre os prazeres da alta sociedade, que Francisque Sarcey exprimia ainda outro dia o justificado receio de que esta espécie de espectáculos viesse a matar, em breve tempo, o gosto pelo teatro. Mas, se as pessoas que em Sintra têm cavalos e carruagens não organizaram um certame formal, iniciaram-no indirectamente.
A batalha das flores, organizada em benefício dos pobres da localidade, se não foi um concurso, foi já uma grande parada e uma bela revista de sport, em que se exibiram em grande gala no meio de um considerável luxo de flores, de pastilhas e de lindas toilettes de verão, os mais belos cavalos de tiro e as mais elegantes carruagens de campo e de passeio.
A série de bailes foi inaugurada pela Princesa Amélia. A casa ocupada pelos duques de Bragança é a antiga quinta do Relógio. O prédio, relativamente pequeno, de um só pavimento, abre para os jardins um recanto do caminho dos Pisões, por uma fachada um pouco teatral, em três ou quatro arcos de volta de ferradura, em estilo árabe.
A dois bailes dados na quinta do Relógio seguiram-se vários outros nas principais casas aristocráticas de Sintra, sendo o último o dos condes do Paço de Lumiar na linda propriedade dos marqueses de Pombal, e o penúltimo em casa dos duques de Palmela.
A casa de Palmela em Sintra, posto que moderna — creio ter sido construída pelos condes da Póvoa depois de 1834 — é das mais interessantes. Conserva a mobília e a decoração primitiva, o que faz dela um curioso tipo de civilizado interior da Restauração, com salas autenticamente e genuinamente semelhantes àquelas que organizaram e dirigiram em França Madame de Staël, Madame de Remusat, Madame Récamier, Madame Cuizot e Madame de Girardin. E no meio dos motivos egípcios da sua decoração mural, entre os grandes canapés rectilíneos e os altos tremós em colunas de mogno e de ébano com capiteis de bronze cinzelado, legado do primeiro império aos reinados que se lhe seguiram como derradeira invenção original na arte do mobiliário moderno, a silhueta da duquesa de Palmela parece achar-se em uma das molduras que mais convém à expressão das suas linhas.
Na noite do baile o antigo parque através do qual se entra na casa Palmela, iluminado de muitos centenares de lanternas venezianas, abria na calma escuridão da noite flexuosas e fantásticas perspectivas de uma profundidade infindável. Por volta das dez horas, à chegada dos duques de Bragança, que se dignaram de assistir a esta festa, os violinos de uma orquestra invisível fizeram ouvir um desenvolvimento de melodia; duas filas de vinte criados, em grande libré, encarnado e preto, calção curto, cabelo empoado, levantando em candelabros as luzes de muitas velas, adiantaram-se desde a porta do vestíbulo até o extremo da marquise que abrigava a descida das carruagens enquanto a dona da casa, de vestido branco em brocado de ouro, recebia à portinhola do landau os seus régios hóspedes. E neste lindo espectáculo, sob os grandes castanheiros, numa quebrada da serra, envolto na solidão dos campos e na abóbada do céu recamado de estrelas, parecia celebrar-se numa espécie de misterioso enlace entre a poesia da noite e a graça hospitaleira da civilização.
Ramalho Ortigão
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