Alexandre O'Neill- Meditação na pastelaria
Meditação na pastelaria
Por favor, Madame, tire as patas,
Por favor, as patas do seu cão
De cima da mesa, que a gerência agradece.
Nunca se sabe quando começa a insolência!
Que tempo este, meu Deus, uma senhora
Está sempre em perigo e o perigo
Em cada rua, em cada olhar,
Em cada sorriso ou gesto de boa-educação!
A inspecção irónica das pernas, eis o que os homens sabem oferecer-nos!,
Inspecção demorada e ascendente, acompanhada de assobios
E de sorrisos que se abrem e se fecham
Procurando uma fresta, uma fraqueza qualquer da nossa parte...
Mas uma senhora é uma senhora.
Só vê a malícia quem a tem.
Uma senhora passa e ladrar é o seu dever – se tanto for preciso!
O pó de arroz: Horrível!
O bâton: Igual!
O amor de Raul é já uma saudade, foi sempre uma saudade...
(O escritório toma-lhe o tempo todo?
Desconfio que não...)
Filhos tivemos um: desapareceu...
E já nem sei chorar!
Chorar... como eu queria poder chorar!
Chorar encostada a uma saudade bem maior do que eu,
Que não fosse esta tristeza absurda de cada dia:
Unha quebrada de melancolia...
Perdi tudo, quase tudo...
Hoje, resta-me a devoção e este pequeno inteligente cão.
Por favor, Madame, tire as patas,
Por favor, as patas do seu cão
De cima da mesa, que a gerência agradece.
Alexandre O'Neill
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