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eça de queiroz — carta de paris (XIV)

 

XIV

 

Outra bomba anarquista

— O senhor Brunetière e a imprensa

 

 

As bombas anarquistas (porque tivemos outra, a bomba de Henry, lançada no Café Terminus e que feriu trinta pessoas) vão entrando lentamente na classe dos acidentes naturais, onde tomam um modesto lugar, logo depois das inundações e dos incêndios. Evidentemente o primeiro rio que alagou os primeiros campos cultivados, ou o primeiro fogo que rebentou na primeira cidade edificada, encheu os homens de um terror tanto mais desordenado quanto por trás dessa rebelião de elementos eles viam a cólera de um Deus ofendido. Cada várzea inundada, cada cabana queimada, dava assim motivos a longas cerimónias expiatórias, à invenção de novas fórmulas litúrgicas, a um desenvolvimento excessivo da autoridade sacerdotal, e mesmo a especulações lírico-metafísicas dos vates, que eram então os filósofos que tudo explicavam. Depois, quando se observou que estas violências da água e do lume ocorriam tão regularmente como as estações, e que cada Inverno os vales se submergiam, e cada Verão ardiam as choças de madeira e colmo, não houve mais coração que palpitasse de pavor místico. Mesmo acreditando sempre que, através de tais desastres, se manifestava o descontentamento divino, foi a autoridade civil e não já à casta sacerdotal que se pediram medidas preventivas ou salvadoras. E nem se lhe conferiram poderes novos e excepcionais, na certeza que, para conter a água e apagar o fogo, bastaria apenas alguma vigilância e saber técnico da administração urbana e rural.

Com efeito há já alguns milhares de anos que os rios devastam searas e o lume devora prédios, sem que por isso a Igreja ou o Estado se comovam ou tremam pela sua estabilidade.

É exactamente o que vai sucedendo com os anarquistas. Às primeiras bombas houve um tumultuoso tenor, como perante uma estranha e demoníaca demência que ameaçava a velha estrutura social. Cada explosão foi motivo para que se promulgassem leis de excepção, para que se reforçasse temerosamente o braço penal dos governos, para que os filósofos formulassem complicadas receitas sociológicas, e mesmo para que certos espíritos mais impressionáveis suspirassem pela intervenção divina de um messias, como único capaz de pacificar os homens. Depois, quando se ouviu cada semana estalar uma bomba, e sem destruir mais propriedades ou vidas do que certos desabamentos de terrenos ou descarrilamentos de comboios, o medo fantasmagórico de uma catástrofe social imediatamente findou: o hábito embotara a emoção, e estas ex-plosões revolucionárias começaram a ser equiparadas às que fatalmente e inevitavelmente se produzem dentro de uma civilização industrial e mecânica, as do gás, das caldeiras de vapor, das peças a bordo dos couraçados e do grisu no fundo das minas. Contra elas já não parece necessário improvisar códigos mais repressivos, nem invocar a interferência messiânica. E a opinião traquilizada só reclama, para domar a bomba, essas medidas preventivas que na indústria se esperam da prudência técnica dos contramestres e na ordem civil da vigilância profissional dos comissários de polícia.

É neste espírito que a polícia em Paris está procedendo à prisão sistemática de todos os anarquistas.

Cada madrugada se faz através da cidade uma colheita de sectários. Ontem quinze, hoje vinte... Os jornais apenas publicam, sem comentários, a lista seca dos nomes. Alguns destes homens têm mulher, têm filhos, a quem o pão vai faltar. Mas desses detalhes mínimos, neste momento de saneação pública, não cura o pretor. A coisa essencial é que não reste, livre nas ruas de Paris, um proletário capaz de misturar um pouco de glicerina a um pouco de ácido nítrico. Nem é mesmo necessário que o anarquista seja militante. Os simples teóricos, que professam e metodizam o anarquismo no livro ou no jornal, são igualmente levados na vasta monteria policial. De resto, o que o Governo pretende, com esta encarceração geral de anarquistas, é conhecê-los, fotografá-los, estudá-los, surpreender as suas ligações e filiações, e formar assim um registo muito minucioso e muito documentado de toda a seita.

Findo este vasto inquérito prático, todos serão soltos, como se soltam as manadas dos bois nas lezírias, depois de bem numerados e bem marcados. Indubitavelmente é uma dura lei – mas vem de uma dura necessidade. Era realmente intolerável que, numa cidade do século XIX, um pacífico homem não pudesse entrar num café, ou num teatro, com a mulher e o filho, sem correr o risco de voltarem de lá, ele e os seus, crivados de pontas de pregos, em nome de uma heresia digna do século III. Porque o anarquista é com efeito um socialista que se tomou herético. Este nosso anarquista está para o socialismo, como estavam para o cristianismo nascente os montanhistas, e os valentinistas, e os carpocráticos que pregavam o amor livre, e os circoncélios que pregavam a destruição universal, e tantos outros, extravagantes e terríveis. Todos esses heréticos, tortulhos venenosos da árvore evangélica, não fizeram senão deturpar e desacreditar a pureza da doutrina, retardar-lhe a obra regeneradora e atrair-lhe perseguições sangrentas. Eram por isso ainda mais odiados pelos bispos cristãos que pelos pontífices pagãos. E quando sobre eles caía a lei do império, com ferocidade, como sobre inimigos do género humano, havia tanto regozijo do lado de Jesus, como do lado de Júpiter.

Igual regozijo acompanha esta perseguição, que nada tem, louvado seja o nosso tempo, da crueldade da de Décio ou de Diocleciano. Mesmo os que lamentam que ela espalhe tanta miséria entre mulheres e crianças abandonadas, desejam veementemente que a seita seja, se não esmagada, ao menos inutilizada. A obra do Estado seria pois perfeita se, inspirada simultaneamente pelo sentimento de ordem e de humanidade, ele, pelo lado da polícia, prendesse os anarquistas, e, pelo lado da assistência pública, lhes socorresse as famílias que ficam sem o pão do salário perdido.

Mas infelizmente, entre tantos órgãos de que está provido o Estado, não há nenhum que tenha a forma, mesmo vaga, de um coração humano.

 

Não sei se conhecem o Sr. Brunetière. O Sr. Brunetière e hoje nas letras francesas um grande personagem – quase devia dizer, dada a qualidade do seu espírito e das suas funções, um grande mandarim. Quando o velho Buloz foi exilado da Revista dos Dois Mundos, por ter amado fora da Revista, e com uma espécie de amor que a Revista não permite, a assembleia de accionistas dessa venerável publicação nomeou para o cargo de director o Sr. Brunetière. Além disso, o Sr. Brunetière era já o director, se não espiritual, ao menos intelectual, das damas letradas do Faubourg St. Germain, tendo portanto a gloriosa missão de ensinar o que, em matéria de literatura, uma duquesa deve aceitar ou deve rejeitar para conseguir um lugar no reino dos bons espíritos. Como consequência destes dois nobres empregos, o de director da Revista e confessor literário das almas aristocráticas, o Sr. Brunetière foi por influência das senhoras (e entre as senhoras incluo a Revista) eleito membro da Academia Francesa. E finalmente, para consagrar a sua reputação, a mocidade das escolas apupou furiosamente o Sr. Brunetière, e, assim como a democracia revoltada outrora queimava o trono dos tiranos (não sei se aí no Rio, na revolução de Novembro, se omitiu esta formalidade clássica), quebrou a poltrona professoral, onde ele, na Sorbona, pregava a boa doutrina, desmantelava o naturalismo e explicava às suas devotas a maneira mais delicada de saborear Bossuet. Eu conto estes guinchos e furores da mocidade como um dos elementos da sua glória, se não já do seu valor, porque desde que as ideias gerais recomeçaram a apaixonar os espíritos moços e que nos pátios das universidades se trocam outra vez bengaladas por causa de teorias, um professor só poderá ser considerado suficientemente original, vivo, forte, fecundo, quando o seu ensino tenha provocado rancores ou entusiasmos.

Os antigos portugueses tinham, da nossa história trágico-marítima, tirado este provérbio: «Só a grande nau, grande tormenta.» E por isso significavam implicitamente um certo desdém por toda a barcaça chata e nua que passava despercebida do vento e da vaga. O Quartier Latin está criando um provérbio paralelo: «Só a grande professor, grande berreiro.» Quando o professor é chato ou oco, em tomo dele ou do seu ensino há indiferença e calmaria. O escândalo, ao contrário, prova um mestre.

Ora, de um homem por tantos motivos importante como o Sr. Brunetière, todas as palavras são importantes. Por isso, a feroz verrina que ele, no seu discurso de recepção na Academia Francesa, lançou contra os jornais e os jornalistas mereceu mais atenção do que geralmente merecem estas grande e usuais imprecações contra a imprensa, as mulheres, o vinho e outros males.

Eu conheço imperfeitamente o Sr. Brunetière, que é um crítico de profissão. Se nesta nossa idade de colossal e quase abusiva produção (só a França publica por ano doze mil volumes!) já não há tempo para ler os autores –quanto menos os comentadores! O Sr. Brunetière ensina agora na Sorbona a compreender e amar Bossuet. Mas quem teve o vagar ditoso de ler primeiramente Bossuet, se é que o não leu no começo da sua educação clássica? Eu, na minha mocidade, folheei os Sermões e as Orações Fúnebres: mas não cheguei a penetrar, como devia, no Discurso sobre a História Universal. E desde então, desgraçadamente, não logrei ainda um momento para absorver a teoria do grande bispo sobre a série dos tempos, das religiões e dos impérios. Quando muito conheço a página clássica, tão majestosa e rica, em que ele pinta a omnipotência de Augusto e a beleza e recolhimento da paz romana, nas vésperas de nascer Jesus. É pouco. Mas se tão pouco conheço Bossuet, não me deve ser censurado o ignorar quase inteiramente o seu apologista.

Pelo que tenho ouvido, porém, parece-me que o Sr. Brunetière está para as letras como um botânico está para as flores. Percorrendo os canteiros de um jardim, o botânico conhece cada flor, e o seu nome latino, e o número das suas pétalas, e todas as suas variedades, e o largo género em que se filia, e a zona e o terreno que melhor convém ao seu desenvolvimento, etc., etc. Há só na flor uma coisa sobre que o juízo do velho botânico sempre claudica, ou porque a desdenhe ou porque a não sinta – e é beleza especial da flor, que está talvez na cor, nas dobras das folhas, na maneira por que se mantém na haste, em mil particularidades indefinidas nesse não sei quê que lhe habita as formas e que faz que diante dela paremos, e a contemplemos, e a apeteçamos, e a colhamos. O Sr. Brunetière é este sapiente botânico entre flores. Que lhe dêem um poeta, e ele imediatamente o classificará, lhe colocará um rótulo nas costas, mostrará o género que cultivou, desfiará as qualidades que revelou nesse género, exporá as influências de raça, e de meio, e de momento histórico que concorreram para o desenvolvimento dessas qualidades, etc., etc. Será superiormente erudito – e só lhe faltará o sentir, pelo gosto, esse não sei quê de íntimo que constitui a beleza ou a grandeza do poeta. O Sr. Brunetière é um botânico das letras. E de resto esta comparação não lhe poderia desagradar, porque ele é um dos que recentemente, ao que parece, mais se têm aplicado a introduzir nas ciências morais o método das ciências naturais, e a considerar as obras humanas, e sobretudo as obras de literatura e de arte, como produtos de que a critica e a estética só têm a verificar os caracteres e a esmiuçar as causas. Isto desde logo o torna para mim um crítico extremamente respeitável e pouco simpático. Ignorante como sou, eu gosto de um critico que me possa explicar as causas e os caracteres da obra de Musset, mas que sinta palpitar o coração quando lê as Noites e a Carta a Lamartine, ou porque se lhe comunicou a emoção do ardente lírico, ou porque se enlevou na contemplação da beleza realizada. Sem a faculdade emotiva e o gosto, o crítico pertence àquela espécie de esmiuçadores de causas e arrumadores de géneros que Carlisle chamava os ressequidos.

Além disso, segundo ouço, o Sr. Brunetière é um ríspido, um inflexível, todo ele dogmatismo e intolerância, sem uma gota, para o amolecer e lubrificar, daquele leite da humana bondade de que fala outro inglês, o muito adorável Dickens. E esta outra qualidade do Sr. Brunetière aumenta a minha antipatia, toda de instinto, para com este homem de talento e de bem. Não posso por isso ser considerado suspeito, no aprovar, como aprovo, todas as acusações que, no seu discurso de recepção na Academia, ele desenrolou contra os jornais, contra os jornalistas e, portanto, contra mim, que sou, a meu modo, e de um modo bem imperfeito, uma espécie de jornalista.

 

O Sr. Brunetière censura à imprensa a sua superficialidade, a sua bisbilhotice e escandaloso abuso de reportagem e o seu sectarismo. Ser superficial, bisbilhoteiro e sectário é ter realmente uma respeitável soma de defeitos.

Uma só basta para desacreditar em matéria intelectual ou social. Todos juntos pedem as Gemónias. E todavia a imprensa, que os possui todos, está num trono e resplandece. Mas Nero e Vitélio governaram o mundo – e a sua triunfal autoridade não lhes tira a indecente monstruosidade!

A imprensa, que também hoje governa o mundo, não é, Deus louvado, nem indecente, nem monstruosa. Todos esses vícios, porém, que lhe atribui o Sr. Brunetière, é certo que ela os pratica, em proporções diversas, segundo o seu temperamento de raça e as suas condições funcionais. O Times e outros jornais ingleses, riquíssimos e possuindo toda uma coorte de especialistas, pronta a tratar todas as matérias, desde as de culinária até as de metafísica, apresentam geralmente, sobre as questões ocorrentes, estudos sólidos em que está resumido muito saber e muita experiência. Por outro lado, na Alemanha, país das ideias gerais, e que só se interessa por ideias gerais, e em Portugal e na Espanha, onde todos herdámos dos nossos avós, Godos e Árabes, o respeito quase sacrossanto da vida íntima – os jornais não são bisbilhoteiros, nem abusam indiscretamente da reportagem miúda.

Em média, porém, afoitamente se pode afirmar que na Europa e na América a imprensa é superficial, linguareira e sectária. Ora, estes defeitos não são, a meu ver, somente perniciosos por enfraquecerem, como pretende o Sr. Brunetière, a autoridade da imprensa e fazer lamentar os tempos sólidos de Armand Carrel, em que se punha na composição de um artigo mais cuidados do que hoje se põe na preparação de uma enciclopédia. Tais defeitos são sobretudo nocivos porque a imprensa os comunica ao público, com quem esta em permanente comunhão, e assim, em lugar de educadora, se tem lentamente tornado uma viciadora do espírito e dos costumes.

Incontestavelmente foi a imprensa, com a sua maneira superficial e leviana de tudo julgar e decidir, que mais concorreu para dar ao nosso tempo o funesto e já irradicável hábito dos juízos ligeiros. Em todos os séculos se improvisaram estouvadamente opiniões: em nenhum, porém, como no nosso essa improvisação impudente se tornou a operação corrente e natural do entendimento. Com excepção de alguns filósofos mais metódicos, ou de alguns devotos mais escrupulosos, todos nós hoje nos desabituamos, ou antes nos desembaraçamos alegremente do penoso trabalho de reflectir. É com impressões que formamos as nossas conclusões. Para louvar ou condenar em política o facto mais complexo, e onde entrem factores múltiplos que mais necessitem análise, nós largamente nos contentamos com um boato escutado a uma esquina. Para apreciar em literatura o livro mais profundo, apenas nos basta folhear aqui e além uma página, através do fumo ondeante do charuto. O método do velho Cuvier, de julgar o mastodonte pelo osso, é o que adoptamos, com magnífica inconsciência, para decidir sobre os homens e sobre as obras. Principalmente para condenar, a nossa ligeireza é fulminante. Com que esplêndida facilidade declaramos, ou se trate de um estadista, ou se trate de um artista: «E uma besta! E um maroto!» Para exclamar: «E um génio!» ou «é um santo!», oferecemos naturalmente mais resistência. Mas ainda assim, quando uma boa digestão e um fígado livre nos inclinam à benevolência risonha, também concedemos prontamente, e só com lançar um olhar distraído sobre o eleito, a coroa de louros ou a auréola de luz.

Nestes tempos de borbulhante publicidade, em que não ladra um cão em Constantinopla sem que nós o sintamos, e em que todo o homem tem o seu momento de evidência, nós passamos o nosso bendito dia a promulgar sentenças e a lavrar diplomas. Não há facto, acção individual ou colectiva, personalidade ou obra humana, sobre que não estejamos prontos, apenas elas nos sejam apresentadas, a formular muito de alto uma opinião catedrática.

E a opinião tem sempre e apenas por base aquele pequenino lado do facto, da acção, do homem, da obra, que aparece, num relance, ante os nossos olhos fugidios e apressados. Por um gesto julgamos um carácter, por um carácter avaliamos um povo. A antiga anedota daquele inglês funambulesco que, desembarcando em Calais de madrugada, e avistando um coxo no cais, escreve no seu livro de notas: «A França é habitada por homens coxos», ilustra e simboliza ainda hoje a formação das nossas opiniões.

E quem nos tem enraizado estes hábitos levianos? O jornal, que oferece cada manhã, desde a crónica até aos anúncios, uma massa espumante de juízos ligeiros, improvisados na véspera, das onze à meia-noite, entre o silvar do gás e o fervilhar das chalaças, por excelentes rapazes que entram à pressa na redacção, agarram numa tira de papel e, sem tirar mesmo o chapéu, decidem com dois rabiscos da pena, indi-ferentemente sobre uma crise do Estado, ou sobre o mérito de um vaudeville. Como exemplo picante eu poderia citar o modo por que a imprensa de Paris tem comentado a revolta do Brasil e julgado o povo do Brasil, sobre vagos bocados de telegramas truncados – se não receasse entrar em um caminho escorregadio, onde me arriscaria a esbarrar com os nossos queridos colegas do Pays e do Temps, armados da sua férula.

Lembrarei apenas que, ainda não há uma semana, o articulista encarregado no Figaro de criticar cada dia os acontecimentos políticos da Europa, e que, portanto, deve conhecer a Europa, estudando a situação económica de Portugal, afirmava, e com uma soberba certeza, que «em Lisboa os filhos das mais ilustres famílias da aristocracia se empregavam como carregadores da alfândega, e ao fim de cada mês mandavam receber as soldadas pelos seus lacaios»! Estes herdeiros das grandes casas de Portugal, carregando pipas de azeite e fardos de café no cais da alfândega, e conservando todavia criados de farda para lhes ir receber o salário – formam um quadro simplesmente portentoso. Pois quem o traça é o Figaro, um dos mais considerados jornais de Paris, e um dos que tem um pessoal mais largo e mais remunerado. E Lisboa todavia está a dois dias e meio de Paris! Mas Londres dista apenas sete horas e meia de Paris –e constantemente os jornais franceses escrevem sobre a Inglaterra, e as coisas inglesas, com a mesma segura ciência com que o Figaro descrevia as ocupações da nobreza de Portugal.

Ora, dizia não sei que sentencioso crítico espanhol que, quando se lê constantemente Séneca, ganha-se os hábitos e o espírito de Séneca. E quando se tem como usual alimento do espírito o Figaro e consortes (e é destas magras viandas que hoje se nutre a memória dos civilizados), facilmente se toma o hábito de ir espalhando estouvadamente, sobre os homens e sobre os factos, juízo efémeros e ocos. E eu próprio, por humildade, para não ostentar uma orgulhosa abstenção do pecado comum, comecei por dar aqui, sobre o Sr. Brunetière, um juízo ligeiro, nascido de impressões fugidias.

 

A outra acusação feita à imprensa pelo douto académico éa da bisbilhotice, da indiscreta e desordenada reportagem.

Há aqui alguma ingratidão da parte do Sr. Brunetière. Para a crítica, sobretudo como ele a compreende e exerce, a reportagem é a grande abastecedora de documentos. Quanto mais detalhes a indiscrição dos repórteres revelar sobre a pessoa do Sr. Zola, e os seus hábitos, e o seu regime culinário, e a sua roupa branca, tantos mais elementos positivos terão os Brunetière do futuro para reconstruir com segurança a personalidade do autor de Germinal, e, através dela, explicar a obra. Não é indiferente saber como era feito o nariz de Cleópatra, pois que do feitio desse nariz dependeram, durante um momento, como muito bem diz Pascal, os destinos do universo. Mas, como a reportagem hoje se exerce, não só sobre os que influem nos negócios do mundo ou nas direcções do pensamento, mas sobre toda a «sorte e condições de gente», desde as cocotes até aos jóqueis e desde os dândis até aos assassinos, sucede que esta indiscriminada publicidade, sem concorrer em nada para a documentação da história, concorre, e prodigiosamente, para o desenvolvimento da vaidade.

O jornal é hoje, com efeito, o grande assoprador da vaidade humana. Em todos os tempos houve vaidosos – e não querem decerto que eu estafadamente cite o estafado Alcibíades cortando o rabo do seu estafado cão, para que se fale dele nas praças de Atenas. A vaidade é mesmo muito anterior a Alcibíades, já aparece a páginas três da Bíblia, e a folha de vinha, bem colocada, é o seu primeiro acto mundano. Incon-testavelmente, porém, em nenhum tempo a vaidade foi, como no nosso, o grande, o principal motor das acções e da conduta. Nestes estados de alta civilização, que produzem cidades do tipo de Paris e de Londres, tudo se faz por vaidade, e com um fim de vaidade.

E dessa forma nova e especial da vaidade só o jornal é culpado, porque foi ele que a criou. Essa forma consiste na notoriedade que se obtém através do jornal.

«Vir no jornal!» Ter o seu nome impresso, citado no jornal! Eis hoje, para uma forte maioria dos mortais que vivem em sociedade, a aspiração e recompensa supremas.

Nos regimes aristocráticos, o grande esforço era obter, se não já o favor, ao menos o sorriso do príncipe. Nas nossas democracias é alcançar o louvor do jornal. Para conquistarem essas dez ou doze linhas benditas, os homens praticam todas as acções – mesmo as boas. Não é mesmo necessário que essas linhas contenham um panegírico: basta que ponham o nome, a personalidade em evidência, numa tinta bem negra, que hoje tem um brilho mais desejado que o antigo nimbo de ouro. E não há classe que não esteja devorada por esse apetite mórbido do reclamo. Ele é tão vivo no mundano, no homem de prazer, na mulher de luxo, como naqueles que parecem preferir na vida a obscuridade, o silêncio. Porque vêm agora, nestas semanas, esses frades dominicanos, do fundo dos seus claustros, pregar nos púlpitos de Paris sermões de Quaresma grandemente teatrais e criadores de escândalo? Para terem uma celebridade no género Coquelin, e interviews nos jornais de literatura elegante, e o seu retrato, no hábito do grande S. Domingos, exposto entre jóqueis ilustres e as cancanistas do Moulin Rouge. E esta esperança do «artigo no jornal», que, como outrora a esperança do céu, governa a conduta e as ideias – e para «vir no jornal» é que os homens se arruínam, e as mulheres se desonram, e os políticos desmancham a boa ordem do Estado, e os artistas se lançam na extravagância estética, e os sábios alardeiam teorias mirabolantes, e de todos os cantos, em todos os géneros, surge a horda sôfrega dos charlatães. Cada um se empurra, se arremessa para a frente, quer fazer estalar, bem alto no ar, o seu fogo-de-artifício, para que o jornal o comente, e a multidão se apinhe e murmure boquiaberta: «Ah!»

Mas, por Deus!, agora reparo que estou aqui compondo uma página de moralista amargo, o que é faltar ao bom gosto do nosso tempo, e sobretudo aos santos preceitos da ironia. Imediatamente me calo – e estou mesmo pronto a concordar que o jornal também incita à virtude... E tal magnífico banqueiro judeu dá, pelo Natal, cem mil francos aos pobres, para que a sua caridade venha no jornal! Bendito seja o jornal!

Nem mesmo, com receio de tomar o desagradável tom de um censor dos costumes, quero insistir na outra acusação formulada pelo Sr. Brunetière contra a imprensa – a de partidarismo e de sectarismo. De resto, é por pura humildade cristã que eu, que me considero a meu modo um jornalista, confessei, falando do jornalismo, estes pecados em que colaboro impenitentemente.

Estamos na Semana Santa, e é de bom exemplo que cada um rosne o seu mea culpa e cubra a cabeça de uma pouca de cinza. Além disso, queridos amigos e confrades no pecado, esta carta, em que contritamente apontei alguns dos vícios mais dissolventes dos jornais, a sua superficialidade, a sua bisbilhotice, o seu partidarismo, vícios que os tornam tão pouco próprios para serem lidos pelo homem justo, já vai copiosamente larga – e eu tenho pressa de a findar, para ir ler os meus jornais com delícia.

 

Eça de Queiroz

 

 

 



15/03/2007
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